ANÁLISE

Coaches e dominionismo: puro suco de extrema direita – Por Raphael Fagundes

No mundo de hoje, parece que a religião vai perdendo forças na empreitada material da vida e vai cedendo lugar para o influenciador ou coach

Pablo Marçal.Créditos: Reprodução de Vídeo/X
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Por muito tempo houve o projeto pedagógico neopentecostal baseado na afirmação do mundo e de gozo do dinheiro. Na perspectiva da teologia da prosperidade, o crente está destinado a ser próspero, saudável e feliz neste mundo. E o principal sacrifício que Deus exige de seus servos, segundo essa teologia, é de natureza financeira: “ser fiel nos dízimos e dar generosas ofertas com alegria, amor e desprendimento”, afirma a socióloga Christina Vital da Cunha.[1]

Contudo, essa noção de prosperidade terrena na religiosidade cristã é fruto de um processo de secularização do protestantismo ascético, como bem mostra a tese de Max Weber. Inspirados no calvinismo, interpretava-se, já nos primeiros anos do século XIX, o caminho para a salvação eterna como decorrente do sucesso mundano e visível.

A ética protestante funciona da seguinte maneira: “De fato, se Deus, cujas mãos os puritanos viam em todas as ocorrências da vida, aponta para um de Seus eleitos uma oportunidade de lucro, este deve segui-la com um propósito, de modo que um cristão de fé deve atender a tal chamado tirando proveito da oportunidade”.[2] Max Weber mostra que a ideia de que “quanto maior a posse [...], mais pesado o sentimento de responsabilidade em mantê-la intacta para a glória de Deus e em fazê-la crescer em um esforço contínuo” tem suas origens na Idade Média, “mas foi na ética do protestantismo ascético que encontrou fundamentos éticos consistentes. Seu significado para o desenvolvimento do capitalismo é óbvio”.[3]

Foi nessa lógica que a literatura de autoajuda nasceu nos EUA sob forte influência calvinista. De acordo com a historiadora Karina Bellotti, a primeira obra identificada com o título “Autoajuda” é do escocês (residente nos EUA) Samuel Smiles, “que apostava num ideal calvinista de autoaprimoramento do caráter”.[4]

Contudo essa literatura se transforma na passagem do século XIX para o XX: “Se em meados do século XIX o conceito de autoajuda denotava na literatura popular norte-americana a ideia moral de ética de trabalho e cultivo de bons hábitos, a partir da virada do século XIX para o XX, o conceito de autoajuda implica o cultivo de poderes mentais para a transformação do indivíduo em pessoa de sucesso”.[5] Na tensão da Guerra Fria, essas obras adquiriram uma ênfase em aspectos psicológicos e psiquiátricos e o Estado de Bem- estar social promoveu “uma preocupação maior com a saúde física e emocional coincidente com o declínio da preocupação com a riqueza”.[6]

Entretanto, no mundo de hoje, parece que a religião vai perdendo forças nessa empreitada material da vida e vai cedendo lugar para o influenciador ou coach. Só em 2019 houve um aumento de 300% no número de profissionais desta área e o Instagram acabou se tornando “uma ótima vitrine para esses coaches. Afinal, é um ambiente em que é possível, e até mesmo desejável, mostrar-se bem-sucedido e feliz, respaldando o discurso meritocrático que é reverberado por esse tipo de profissional”.[7]

Agora para se tornar um sujeito de sucesso é preciso adotar a lógica do empreendedor de si mesmo, investir em si mesmo, tornar-se um capital humano.

O coach é aquele que faz a função do pastor que pregava a teologia da prosperidade, mas com a possibilidade de atrair desengrejados e agnósticos. Pablo Marçal, por exemplo, lança mão da retórica evangélica com frequência. Em um curso de R$ 15 mil, o coach afirma que fará seu aluno “crescer e prosperar sobre a terra”. De acordo com Milena de Azeredo Pacheco Venancio, “Pablo é apresentado como um guru ou pastor responsável por conduzir o ‘rebanho’ que faz seus cursos”.[8]

Não sei se a briga entre Silas Malafaia e Marçal está relacionada ao “roubo” de fiéis (somente o futuro irá desvendar essa questão). Acredito que tudo não passa de um espetáculo e que duas frentes de extrema direita se abrem.

O influenciador digital possui uma função no mercado. Uma pesquisa realizada em 2019 pelo Instituto QualiBest aponta que 73% das pessoas entrevistadas “compraram um produto ou serviço por indicação de um influenciador digital”.[9] Esse influenciador, por sua vez, não vende apenas produtos físicos, mas, também, estilo de vida. A própria transformação das blogueiras em influenciadoras digitais alterou o ethos desse profissional. A pesquisa da jornalista Issaaf Karhawi observa “alterações na construção do ethos profissional das blogueiras, que deixam de se intitular apenas como produtoras de conteúdo, passando a se apresentar como empresárias digitais”.[10] “É a mercantilização do próprio sujeito que passa a compor sua atividade profissional”.[11]

Na disputa de vender a mesma mercadoria (o sucesso pessoal), o influenciador digital vem ocupando o espaço das igrejas neopentecostais que passam a se dedicar a outro projeto ideológico: a batalha espiritual entre o Bem e o Mal.

Teologia do Domínio ou Dominionismo

Segundo Magali Cunha, a Teologia do Domínio é “a busca da reconstrução da teocracia na sociedade contemporânea, no cumprimento da predestinação dos cristãos/ãs ocuparem postos de comando no mundo (presidências, ministérios, parlamentos, lideranças de estados, províncias, municípios, supremas cortes) – o domínio religioso cristão – para incidirem na vida pública”.[12] É uma teologia inspirada em Gênesis 1:28, onde se encontra o versículo “dominai a terra”, que é também um aval para o ser humano explorar o meio ambiente para o seu interesse próprio.[13]

De acordo com essa teologia, nós “vivemos e participamos de uma empedernida guerra cósmica entre Deus e o Diabo pelo domínio da humanidade. Nessa batalha, nessa guerra cósmica, para obter a vitória sobre o Mal é importante se fortalecer espiritualmente, dizem as lideranças religiosas, e o comparecimento aos cultos e a participação em um sem número de correntes e campanhas de cura e libertação é condição sine qua non da vitória”.[14]

Michelle Bolsonaro, logo depois de dizer que houve o equívoco de separar religião e política, o que ela basicamente quis dizer é que ela pretende voltar ao século XVII, que é a monarquia absoluta e direito divino. Ela usou a categoria do mal, “o mal dominou”, “o mal ocupou o terreno”.

O professor João Cezar de Castro Rocha mostra que “quando Michelle Bolsonaro traz para a esfera da política a categoria do mal, é uma indicação precisa de que se trata de uma distopia. Usando as palavras corretas, é uma distopia teocrática, fundamentalista. É uma distopia teonomista porque é uma distopia que pretende subordinar toda a nossa vida à religião”.[15]

Se a racionalidade neoliberal tem como objetivo impor a lógica do custo-benefício a todas as esferas da sociedade, a teologia do domínio tem o objetivo de resumir tudo à batalha entre o Bem e o Mal. Contudo, essas duas formações discursivas[16] não se chocam, já que uma das bases do protestantismo moderno é a riqueza material, o sucesso pessoal.

Portanto, duas frentes ideológicas da extrema direita se abrem para cativar e convencer as pessoas a votarem em princípios que não resolvem os seus problemas reais, pelo contrário, os intensifica. As classes populares, largadas ao abandono e à exclusão, sem barreiras cognitivas e emocionais para se proteger dessas ideias[17], acabam se dobrando a esse projeto de dominação reacionário. Cabe à esquerda fornecer as ferramentas para blindar os oprimidos de modo que “a realidade concreta de opressão já não seja para eles uma espécie de ‘mundo fechado’ (em que se gera o seu medo da liberdade) do qual não pudessem sair, mas uma situação que apenas os limita e que eles podem transformar. É fundamental, então, que, ao reconhecerem o limite que a realidade opressora lhes impõe, tenham, neste reconhecimento, o motor de sua ação libertadora”.[18]

 

[1] CUNHA, C. Oração de traficante. Rio de Janeiro: Garamond, 2015, p. 253.

[2] WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 122.

[3] Id., p. 127.

[4] BELLOTI, K. Pensando positivo - uma história cultural do gênero de aconselhamento e Autoajuda religiosa nos Estados Unidos e no Brasil (1930-1960). _____ e CUNHA, M. (orgs.). Mídia, religião e cultura. Curitiba, 2019, p. 90.

[5] Id., p. 94.

[6] Id., p. 95.

[7] VENANCIO, M. “Só os irresponsáveis chegam ao topo”: narrativas de coaches motivacionais nas redes e o caso Pico dos Marins. Dispositiva, V. 12, n 22, 116-135, jul/dez, 2023, p. 117.

[8] Id., p. 127.

[9] KARHAWI, I. De blogueira a influenciadora. Porto Alegre: Sulina, 2022, p. 211.

[10] Id., p. 190.

[11] Id., p. 209.

[12] CUNHA, M. Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendencias e desafios para a ação. Salvador: Koinonia, 2020, p. 18.

[13] PONTING, C. Uma história verde do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 240.

[14] CUNHA, C., p. 253.

[15] https://outraspalavras.net/outrasmidias/para-entender-a-perigosa-teologia-da-dominacao/

[16] https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-tempo-da-economia-engole-a-educacao/

[17] Conforme explica: SOUZA, J. O pobre de direita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024, p. 152.

[18] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 35.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.