CRÔNICA

Intruso – Por Luis Cosme Pinto

O invasor aterrorizou Débora. Assombrada, ela não percebeu que estava bem protegida

Imagem ilustrativa.Créditos: Pixabay Free
Escrito en OPINIÃO el

São Paulo tem bairros que parecem cidades, de tão grandes. E tem também os que levam cidade no nome. A zona leste tem várias “cidades”: a Tiradentes é uma delas. Na zona sul são mais duas: Cidade Dutra e Cidade Ademar.

A jornalista Débora, vamos chamá-la assim, não esquece o dia em que conheceu Cidade Ademar, quase no limite com Diadema.

Um morador telefonou para a TV Cultura e pediu que o jornal 60 minutos fizesse uma reportagem sobre a infestação de ratos na região. Débora não tem certeza se foi na favela do Levanta Saia ou do Buraco Quente. Talvez tenha sido nas duas.

Esquecidas pelas autoridades, as comunidades, de córregos poluídos e praticamente sem coleta de lixo, atraíam os bichos pela sujeira e mau cheiro.

Minha amiga Débora ainda comenta o susto que levou ao entrar na casa pequena de madeira, em que a família de sete pessoas dividia um cômodo e um banheiro. Em cima da tampa do vaso sanitário, um paralelepípedo impedia que as ratazanas, depois de escalar o cano, abrissem a privada com o corpo avantajado e assombrassem a casa.

Débora ouviu os moradores, cobrou a prefeitura e entrevistou um pesquisador de roedores. Com a voz baixa e o olhar tímido, o estudioso assustou quem acompanhava a reportagem em plena hora do almoço.

- São Paulo tem ratos em todos os bairros. A bicharada vive nos subterrâneos e sai de vez em quando.

- Dá para fazer um cálculo de quantos são? Débora quis saber.

- Para cada morador da cidade existem 10 ratos. Como somos 12 milhões, são cerca de  120 milhões de camundongos, ratazanas e ratos de telhado.

“Uau! 120 milhões de ratos!” Gritaram, estarrecidos, os jornalistas que assistiam a reportagem na redação.

Débora já se aposentou, mas é certo que os ratos continuam na ativa nas incontáveis favelas da cidade, do país, do mundo. Os moradores se defendem e, às vezes, também atacam com armadilhas e ratoeiras.

Bem misturados, açúcar, farinha e bicarbonato de sódio atraem e liquidam o bicho; outra mistura fatal é gesso espalhado em requeijão ou em queijo ralado. Na falta de veneno uma cebola cortada é receita infalível para afastar os comilões.  

Débora, que continua em contato com o pesquisador de roedores, me contou tudo isso no último apagão em São Paulo. De início não entendi a relação da falta de energia com os roedores.

- Tá tudo aceso aqui, o problema é que a tempestade estourou canos e um rato entrou no meu apartamento, que fica no primeiro andar. Até já chorei de desespero.

Ficamos meio minuto em silêncio. Eu porque não sabia o que dizer. Ela porque não conseguia falar.  

- Ele atacou as frutas, devorou o bombom que ganhei de presente, mordeu o pão de fermentação natural, fez sujeira e está escondido fazendo a digestão sei lá onde. Tenho medo, raiva e asco de rato!  

Antes que ela me pedisse qualquer prova de coragem, encontrei na internet uma empresa especializada em combater o intruso. Aí, parti pra lá. Cheguei junto com Josimar e sua moto. Ex-porteiro, ex-entregador, ex-manobrista, o cearense Josimar agora é um caçador.

Ele deu as ordens. “Todos os alimentos guardados na geladeira, armários fechados, portas vedadas.” Pela área de serviço e cozinha, espalhou os tabletes do veneno, inofensivo para pessoas e animais domésticos.

Josimar vasculhou embaixo do fogão, atrás da geladeira, quase desmontou a máquina de lavar. Nada. Apontou a lanterna para todos os cantos. O resultado foi o mesmo.

O homem se despediu com a confiança dos vencedores. “Dona Débora, fique tranquila, ou o intruso morre ou foge. Nosso serviço não falha.”

Só no dia seguinte, depois da aflição de uma noite de insônia e dos 400 reais que pagou a Josimar, Débora lembrou que tinha a melhor das vigilantes: Bethânia, a gatona peluda e de olhos cinzentos. Naquela manhã, a bichana pulou da cama e rondou incessantemente a porta da cozinha. Agora sim, tava tudo dominado.

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.

**Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.