João do Rio, apelido do jornalista, cronista e escritor Paulo Barreto, entrou pra história como o inventor da reportagem.
João, que nos primeiros anos do século XX encantava os cariocas com os dramas e a graça dos próprios cariocas, alisava as solas de sapato nas ruas de pedra e suava suas elegantes camisas em incansáveis caminhadas. Notícia era o que buscava João. Não a factual, fria. Notícia de gente, isso sim.
Flanava pelas casas de prostituição, era acolhido nas rodas de jogatina, circulava por vielas, bocas quentes. De lá, João trazia histórias de pessoas comuns, seus sonhos e aflições. Transformava estivadores, lavadeiras e até animais – como os burros que puxavam os bondes - em protagonistas. A cidade lia, relia e pedia mais.
Se não bastasse o brilho em vida, João morreu como herói. Fulminado por um infarto aos 40 anos, juntou 100 mil pessoas em seu velório.
O escritor era um homem preto, gordo e gay. E daí? O escritor era, sobretudo, um homem que o carioca admirava e o Rio se uniu para chorar João.
Mais de cem anos se passaram e João renasceu. Foi na semana passada, ao ser o homenageado da Flip, a festa literária de Paraty.
O Brasil e seus mistérios, aqueles que sempre interessaram João.
Se somos um país que lê pouco, como explicar que, um mês antes da Flip, 700 mil pessoas passaram pela Bienal em São Paulo? Alguém pode dizer que o brasileiro gosta de bater perna, foi só xeretar. Pois, terão muito que xeretar: compraram 3,5 milhões de livros.
Na Flip, completamente lotada, João viu 5 dias de encontro da arte da escrita com o prazer da leitura. Viu porque estava lá. Vivíssimo! Foi o que o escritor e historiador Luiz Antonio Simas garantiu ao público na noite de abertura.
Se Simas falou, eu acredito.
João viu a euforia de uma multidão. Brasileiros que lêem e anseiam por mais, ouvem podcasts literários e esperam sem pressa por uma dedicatória. Querem comentar, tirar foto, chamegar a autora ou autor.
A gente se anima com a massa de jovens e se entusiasma ainda mais com os idosos. Alguns com 80, 90 anos, têm dificuldade para andar pelas pedras irregulares do centro histórico, mas a curiosidade é mais forte.
Quem vai à Flip não deseja apenas passear em Paraty, quer acompanhar os debates, as discussões que tanto animavam João do Rio.
Numa dessas vi e conheci três cariocas: Marcelo, menino de Madureira, fez bonito na principal universidade da França, hoje é autor de vários livros e cronista de jornal. Henrique servia lanches no Mc Donald’s agora é autor respeitado. Jessé escrevia em paredes, lavava carros e descobriu que a interminável viagem de trem podia ser uma experiência literária. Nunca mais parou de lançar livros.
Marcelo Moutinho. Henrique Rodrigues. Jessé Andarilho. Guarde esses nomes, se é que já não conhece.
Numa casa ali perto, 50 mulheres exibiam, orgulhosas, suas histórias. A mineira Selma leu crônica. A cearense Jussara interpretou seu poema. Sylvia, paulista, conquistou o público com um conto. Autoras de um livro coletivo, no sarau da casa “Escreva, Garota”.
Acredito que nem João do Rio saberia definir os limites da Literatura e sua capacidade de transformar os destinos de leitores e escritores.
Cultura e arte sempre ensinam. Paraty é terra diversa, do indígena que é vizinho do imigrante europeu, que se encanta com a cachaça e a mandioca da terra. Daí, vira amigo do pescador, que é primo da artesã, que casou com o argentino, que nunca mais voltará a Buenos Aires.
Luis Perequê e sua banda simbolizam essa combinação. Pelos palcos da Flip e para auditórios repletos, desfilaram música caiçara.
A gente ouve os versos do Perequê e depois, quando pesca uma conversa aqui e ali, sai entendendo um tico do jeito caiçara de contar suas histórias.
Tão saborosa como uma crônica de João do Rio é um Prejereba ou um Cambira assado em Tucuruba e servido na Gamela, fisgado com a ajuda de um Espia, que do Caíco soou o Buzo e revelou o cardume perto do Parcel.
Se você compreendeu que a frase aí em cima quer dizer que tão gostoso como o texto do João é um peixe assado em forno de pedra, que foi fisgado com a ajuda de um olheiro; e que esse olheiro, em um pequeno barco e com um apito, deu o alerta de um cardume perto da superfície, parabéns.
Já dá para começar a conversa e até brincar de João do Rio em Paraty.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.