O programa Pé de meia criado pelo governo federal é importante, mas precisamos ter um pouco de cuidado.
Em vez de investir na infraestrutura das escolas, em materiais pedagógicos, diminuição das tarefas dos professores etc., o governo decidiu investir em um caminho que, em tese, manteria o aluno na escola, já que as dificuldades econômicas seriam o principal motivo pelo qual o estudante precisa abandonar os estudos.
Isso de fato é verdade. Contudo esse procedimento está mais próximo de uma governamentalidade neoliberal do que de um projeto social que visa criar uma sociedade mais justa.
Todo esse movimento é guiado pela noção de capital humano desenvolvida pelo economista neoliberal Theodore Schultz. Trata-se de um investimento na formação do indivíduo para aumentar o seu valor no mercado de trabalho. Desenvolver habilidades e competências para que o sujeito se enquadre nos padrões exigidos pelas corporações internacionais.
Desenvolvendo este capital humano, o sujeito se torna empresário de si.
Trata-se de uma espécie de imperialismo educacional: “cria-se um programa internacional de testes para medir habilidades e faz-se que os sistemas escolares locais adotem um currículo baseado nas habilidades necessárias aos empregadores”.[1] Daí temos as exigências da OCDE, UNESCO, Banco Mundial etc..
O procedimento de dar o benefício em espécie nas mãos do beneficiário tem como objetivo fazer com que o sujeito use-o, “como um empresário, onde e como investir o dinheiro recebido”.[2] É um treinamento para ser empresário de si. Um modelo inspirado nos EUA e que pode ser encontrado nas obras de Milton Friedman.
Tratar a educação como investimento e não como gasto, como declarou o próprio Lula, não é uma proposta da esquerda, mas um dos pensamentos básicos do neoliberalismo. Schultz entende a educação como “os atributos do investimento que elevam a produtividade e os lucros dos trabalhadores”.[3] Aliás, essa visão de o trabalhador ter lucro já nos remete a ideia de empresário de si.
Mas todo esse procedimento organizado pelo governo pode levar ao fortalecimento da visão neoliberal de responsabilizar os indivíduos por sua desgraça. Ao término do Ensino Médio, em tese, o aluno terá aprendido as habilidades e competências necessárias para concorrer no mercado de trabalho. Sendo assim, se este mesmo indivíduo não conseguir ser bem sucedido, a culpa não será do sistema, da sociedade, do capitalismo etc., mas do próprio indivíduo.
O governo decidiu não investir em políticas que transformem a realidade social do aluno que o leva a abandonar os estudos. Tudo continua igual. Falta de saneamento, violência, disparidade com as escolas particulares, ou seja, não houve investimento para combater os elementos sociais que levam a produção da miséria, mas apenas nos indivíduos. Isso porque há uma falsa crença de que o investimento no capital humano de cada indivíduo iria transformar a sociedade como um todo (ideologia interiorizada pelos próprios beneficiários dos programas sociais). Essa é uma falácia neoliberal, pois o que o investimento em cada um promove é uma sociedade cada vez mais competitiva e não harmônica.
Se o governo deu para esse jovem o acesso à educação, por que ele ainda não é bem sucedido? Alguns serão bem sucedidos, e talvez até mesmo por conta desse programa, não há dúvida quanto a isso, mas solucionará o problema da educação? Acho improvável. O próprio governo diz que há outros problemas, mas porque decidiu começar por este caminho? É simplesmente porque atende a ideologia neoliberal do capital humano.
A governamentalidade neoliberal não quer intervir na economia, mas nas pessoas, conduzindo o seu comportamento para que tomem decisões baseadas no crescimento individual, na carreira etc.. Essa racionalidade que se espalha pelas mais diversas camadas sociais, não visa a transformação do lugar onde as pessoas habitam, mas o desejo de sair de lá e ir para um lugar melhor, uma conquista por meio do mérito.
Não estamos em uma lógica “na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”, como escreveram Marx e Engels no Manifesto Comunista. Na configuração neoliberal é o desenvolvimento submetido a interesses individuais, no esforço próprio como vemos nos filmes de superação hollywoodianos, em prol de um projeto social em que autonomia é ser empresário de si, e não abrir-se à curiosidade do aluno e sua habilidade de tomar decisões respeitando as capacidades e as necessidades de cada um, como propôs Paulo Freire na pedagogia da autonomia.
Devemos torcer para que o governo tenha programas educacionais mais em conta, que foque nas condições sociais que levam a constituição da pobreza e não entender que tudo pode ser resolvido através da educação como se o capitalismo fosse criando os problemas e a educação lidando sozinha com eles, exatamente como propõe os economistas da Escola de Chicago.[4]
Nessa lógica, toda a educação se torna profissional, já que o objetivo é fazer com que todos se tornem empresários de si. Podemos dizer sobre essa educação o que Friedman fala sobre a preparação vocacional e profissional: “Trata-se de uma forma de investimento em capital humano precisamente análoga ao investimento em maquinaria, instalações ou outra forma qualquer de capital não humano”.[5] Um investimento que visa retorno, não social, mas econômico.
Isso porque os indivíduos formados no Ensino Médio (tirando, evidentemente, os Institutos Federais, CAP etc.) serão incluídos precariamente no mercado de trabalho, já que a estrutura educacional que contribuiu para a sua formação está ainda muito distante das escolas das elites e da classe média. O importante é que no fim a mentalidade do sujeito precarizado será a mesma, a de ser empresário de si.
Será que é possível investir na educação de outra forma em uma sociedade neoliberal? Será que essa forma de investimento também se trata de um capital político, já que muitos jovens foram seduzidos pelo bolsonarismo? Nessa lógica da formação de um empresário de si, o aluno está tendo acesso à educação ou à aprendizagem? A questão é que o programa Pé de Meia pode ser uma cilada se não for seguido por um investimento estrutural tanto na educação quanto nas condições sociais que produzem a evasão escolar.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1] SPRING, J. Como as corporações globais querem usar as escolas para moldar o homem para o mercado. Campinas: Vide Editorial, 2018, p. 81.
[2] LOCKMANN, K. Assistência social, educação e governamentalidade neoliberal. Curitiba: Appris, 2019, p. 327.
[3] SCHULTZ, T. O valor econômico da educação. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 16.
[4] Idem, p. 78.
[5] FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988, p. 93.