Nossa conversa é áspera pelo uso de “gentalha”, à qual poderíamos juntar “escória”, “ralé”, “essa gente”, “escumalha”, designações arrogantes que decoram o ideário fascista e se opõem diretamente a “elite”, “nata”, “escol”, “povo escolhido”, “destino manifesto”, “raça superior” ou “classe dominante”.
Quando nos permitimos usar “gentalha”, “escória”, “ralé”, “essa gente”, “escumalha”, fala o fascista que em todos nós habita, a besta incivilizada que devemos reprimir todo dia ao acordar e nos ver no espelho, com o mantra “hoje não vou matar ninguém!”. Apesar disso, usemos a ferramenta “gentalha” para designar o verdadeiro estorvo da sociedade.
O relatório mundial divulgado pela Oxfam, rede global empenhada no combate à desigualdade, registra a aceleração da concentração de renda em todo o aquecido planeta. Os 5 (olhe os dedos de sua mão) indivíduos mais ricos têm renda equivalente a 2,72 bilhões de pessoas, 34% da humanidade.
Na nossa Pindorama, em particular, perto de 20 mil pessoas têm voz ativa no mercado de ações e detêm 27% da renda nacional, sem 1 dia sequer de trabalho.
Nos cinco primeiros anos após o golpe contra Dilma e graças aos governos do usurpador Temer e do monstro fascista que o sucedeu, aqueles 20 mil rentistas brasileiros DOBRARAM seus lucros com a redução de direitos trabalhistas. Uma neoescravização rotulada de “dinamização da economia” nas decisões dos mesmos juízes do STF que logo em seguida, em eventos públicos, lamentam com cara de contrição dominical a obscena desigualdade social.
Mas afinal, o que produzem os 102 milhões de brasileiros que compõem a metade mais explorada da nação, e em especial os mais de 67 milhões abaixo da linha de pobreza?
Produzem 20 mil milionários, dos quais 51 bilionários, alguns desses legítimos mercadores da morte elevados a “bi” pelos lucros farmacêuticos e da medicina mercantilizada durante a pandemia.
Essa gentalha de 20 mil supostas almas é aproximadamente 1/41 (um quarenta e um avos) da população carcerária do Brasil. Não vai aqui uma sugestão do trato de que são merecedores os verdadeiros parasitas da sociedade. É só uma lembrança.
A mazela do desequilíbrio entre uns poucos vermes de um lado e uma enormidade de necessitados de outro não tem nada de acidental. É um projeto político, econômico e social, construído há séculos. A “evolução” dessa dominação, contudo, requer atenção a certas complexidades e sutilezas.
Se no século XIX o projeto contava com o judiciário e grilhões para submeter os escravizados, hoje o plano deve ao mesmo judiciário e à mídia hegemônica a construção do grande consenso segundo o qual os netos daqueles escravizados precisam pedalar 12h por dia na entrega de lanches, mentalmente metamorfoseados em “empreendedores”, ou em “colaboradores” se um pouco mais qualificados.
E a metamorfose, assim como a injustiça, não é para todos. A gentalha é, ela própria, imune à contaminação ideológica da crença no “livre mercado”, pois vivem muito bem de muito dinheiro público. Tipo Elon Musk pedindo protecionismo e contratos estatais ou, exemplo brazuca, o “Ogronegócio” triplicando os recursos da União que captura desde o golpe de 2016. Recursos, aliás, que são em mais de 70% originários da tributação de quem está embaixo.
Como se vê, os 20 mil brasileiros milionários são bons fariseus, dedicados a pregar que os hospedeiros de cujo sangue vivem não tenham auxílio algum do estado. Afinal, somente a “nata” da sociedade é merecedora.
Os “sem auxílio” podem se rebelar? Claro! Mas, via de regra, quando a massa escravizada faz escolhas políticas em defesa de seus próprios interesses, e não mais em favor do lucro dos ricos, a verdadeira gentalha parasitária convoca seus cães fascistas. Em raros episódios, a gentalha até suja as mãos, como fez ao menos um dos 51 bilionários, Mario Luft, patrocinador da brancaleônica tentativa bolsonarista de 8 de janeiro de 23.
Direta ou indiretamente, o fato é que a gentalha reage desproporcionalmente ao ser desafiada na manutenção da fome, miséria e escravidão de milhões de seres humanos, das quais depende. Sem hesitar, recorre ao golpe de estado, possibilidade evidenciada em 1964, em 2016 e sempre que os ricos forem derrotados nas urnas. Contudo, algo piorou bastante nos últimos oito anos.
Em rápida rememoração, a torpe Ditadura Militar de 1964-1985 nasceu da cumplicidade dos três principais governadores do país: Adhemar rouba-mas-faz de Barros em São Paulo; Carlos Lacerda, o Corvo, na Guanabara; Magalhães Banco-Nacional Pinto, em MG. Três políticos antidemocráticos, fiéis servidores dos investidores internacionais. Agora, comparemos.
Hoje, respectivamente, temos à frente de SP o bolsonarista pró-matança Tarcísio de Freitas; no RJ, o mochileiro-de-grana-provisoriamente-solto Cláudio Castro; e em MG o atentado ambulante à sociedade chamado Romeu Zema.
Ao contrário da trinca de 64, a atual não tem nada a oferecer à gentalha dos 20 mil ricos, senão o próprio modo autoritário, desumano e violento de ver o mundo. E o fazem com a soberba típica dos incultos.
No último 8 de janeiro, os três governadores marcaram posição contra a democracia. Não se tratava de tomar o partido da corrente “A” ou “B” e sim de afirmar um rasteiro acordo civilizatório: deve haver eleições, o mais limpas e justas o possível, e quem ganhar, leva!
Incapazes de comungar desse mínimo denominador democrático, Tarcísio, Castro e Zema, junto a outros 11 governadores e mais 30 senadores, deixaram claro que esperam, torcem e trabalham por um novo golpe de estado.
E boa parte da esperança dessa gentalha está depositada na possível eleição de Trump, em novembro.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.