OPINIÃO

Minhas férias foram vendidas (de graça) para as big techs – Por Raphael Fagundes

Centenas de pessoas postam imagens de viagens, festas, aventuras etc. Uma epidemia de felicidade invade a timeline

Imagem ilustrativa.Créditos: Pixabay Free
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“A tecnologia digital da atualidade, ficou evidente, não é apenas ciência aplicada, como ainda sustentam as filosofias mais vulgares da tecnologia. Ela é, na verdade, um emaranhado confuso de geopolítica, finança global, consumismo desenfreado e acelerada apropriação corporativa dos nossos relacionamentos mais íntimos”.

- Evgeny Morozov

O período de férias é o momento em que muitos fornecem conteúdos para que os anunciantes aumentem seus lucros nas redes sociais. É hora de promover o eu ideal da propaganda! Centenas de pessoas postam imagens de viagens, festas, aventuras etc.. Uma epidemia de felicidade invade a timeline.

Observar esse fenômeno por meio do conceito de “comunidades emocionais”, neste caso, forjadas por nossa contemporaneidade, ou seja, “grupos sociais cujos membros aderem às mesmas valorações sobre as emoções e suas formas de expressão”,[1] seria de suma importância. E se entre os gregos antigos (respeitando as “comunidades emocionais marginais”) era a cólera a principal emoção agenciada pelo discurso dominante, e, posteriormente, durante a Idade Média, a tristeza, no mundo contemporâneo, a felicidade se torna um dever individual, o objetivo final da vida de todo sujeito.

Durante as férias, as pessoas dizem relaxar para manter a saúde mental e começar mais um ano de trabalho alienado, trabalho este que não tem um fim em si mesmo, mas as próprias férias.

E porque nesta situação o sujeito acredita estar feliz? De acordo com Patrick Charaudeau, as emoções devem ser tratadas “sob o olhar de julgamento que se apoiariam nas crenças que um grupo social partilha”.[2] Aqui seria importante relacionar a felicidade à ideia de lazer. O tempo de lazer foi uma invenção pós-Revolução Industrial quando aos trabalhadores foi imposto um novo regime de tempo de trabalho. Resistindo à disciplinarização do seu tempo e dos seus corpos, os trabalhadores “reivindicaram a delimitação das horas a que teriam direito para si mesmos, excluindo-se as dedicadas ao trabalho e ao sono”.[3] Mas muita coisa mudou dos finais do século XVIII para cá. E o capitalismo desenvolveu estratégias  para explorar os trabalhadores até mesmo durante suas férias.

Felicidade e entretenimento

Peter Stearns trata a mudança econômica e social como condutora da transformação emocional. O Estado de bem-estar social possibilitou uma melhora substancial em várias regiões do Ocidente. A sociedade de consumo se ergue. Com o fim desse período e a consolidação do neoliberalismo, a euforia consumista deveria continuar. Deste modo, o mercado se organiza e cria uma procura permanentemente insatisfeita, evitando a ossificação dos hábitos, excitando o apetite dos consumidores para novas experiências. É assim que se estimula o prazer e se forja a felicidade.[4]

A felicidade acabou se tornando uma medida. O Brasil foi o quinto colocado do ranking global de felicidade, atrás apenas da China (91%), Arábia Saudita (86%), Holanda (85%) e Índia (84%).[5] “Assim, em oposição a índices concretos e objetivos de progresso econômico e social, de repente pareceu uma boa ideia que índices mais flexíveis e subjetivos como felicidade fossem utilizados para uma análise mais detalhada e certeira da sociedade”.[6] A felicidade vem se tornando o índice ideal para o melhoramento social no lugar da justiça social. As reformas neoliberais, portanto, usam a felicidade como índice já que em outros setores são decepcionantes.

A internet permitiu o fortalecimento da ilusão liberal de uma conciliação indispensável entre liberdade e felicidade. Se só é possível ser feliz sendo livre, na internet é mostrado “o que é ser feliz” e disponibilizado “os meios de comprar essa felicidade, com toda liberdade”. Todos têm acesso igual ao que é felicidade, mas nem todos têm os recursos econômicos necessários para obtê-la. O historiador Georges Minois é enfático: “A felicidade, na sociedade de consumo de massa, é definida pelas forças econômicas, graças às pesquisas de opinião, aos estudos e à publicidade. A Economia define as normas da felicidade em acordo com os Estados, eles mesmos dependentes da Economia para orientar o consumo”.[7]

Por outro lado, como mostra Eugênio Bucci, “o entretenimento cumpre as funções reunidas que antes cabiam às religiões, aos ideólogos, aos divulgadores científicos…”[8] É por onde a ideologia exerce seu poder de convencimento. E Foucault já dizia: o poder produz prazer.

Como tudo no neoliberalismo, a felicidade se tornou uma mercadoria. E a imposição do que é felicidade é um dos principais motivos de frustração. A promessa liberal é a de que se trabalharmos e seguirmos as leis impostas pelo capital, a felicidade é tangível. O problema é “a distância intransponível entre os ‘ideais intermináveis que eles tem em mente’ e sua realização impossível, o tenaz impedimento de um projeto de vida, até o surgimento da prostração”.[9] Daí surge um mercado de remédios, coaching, auto-ajuda etc..

A culpa se torna do indivíduo. Nas religiões reformadas a razão é o demônio, no mundo secular é a falta de esforço. Criamos, assim, um paradoxo: a causa do sofrimento é a busca incessante pelo gozo.

As pessoas se dedicam às baladas, às férias e aos shows de stand up porque pagaram e por isso precisam usufruir o máximo daquilo. É impressionante como presenciamos uma proliferação de comediantes sem graça, mas que arrancam prazer das pessoas que pagaram para estarem ali. Num espaço pago para rir, tudo se torna piada. Se está pago (e eu trabalhei para ter o dinheiro) eu tenho que ser feliz. Está no contrato social. Na promessa do trabalho, do esforço, da meritocracia. O valor de gozo sucumbiu o valor de uso.

A foto da família feliz, dos dias na praia, geram um mercado do prazer que estimula as redes sociais. Assim como os jogadores de um cassino estão trabalhando para o dono do estabelecimento sem perceber, os que se expõem nas redes sociais fazem o mesmo com prazer.

Até às férias das crianças…

O mercado da felicidade alcança seu apogeu em Janeiro. As crianças estão de férias. Logo somos obrigados a colocá-las em shoppings, levá-las à praia, ao cinema… Porque durante o ano a sua felicidade não é tangível. A escola ainda enxerga na criança apenas o amanhã.

O estudo de Georges Snyders ainda parece atual. O autor observou que “a maioria dos alunos se resigna docentemente à monotonia da escola, esperando que ela termine ao fim de cada dia, ao fim de cada ano, ao fim da juventude - na expectativa (e conformando-se com isso) de que ela os prepare para aquele famoso futuro cheio de promessas e ameaças”.[10] Para ela um presente vazio moldado pela promessa (neoliberal) de um futuro promissor.

Com a teoria do capital humano a educação se tornou um investimento, ou melhor, a criança se tornou um investimento. A racionalidade neoliberal procura formar um sujeito com habilidades e competências como um tipo de capital. Kamila Lockmann chama de capitais humanos infantis os investimentos educacionais que visam “a constituição do futuro Homo economicus do neoliberalismo”, empresário de si.[11] Até mesmo as ações de programas de assistência social para a população mais vulnerável, “não se direciona para a criança ou para a infância, mas para os rendimentos futuros ou os retornos econômicos que esses capitais infantis produzirão para a sociedade”.[12] Então as férias das crianças se tornaram também uma fuga de um projeto neoliberal que impuseram a elas. Os adultos curtem em nome de um presente sufocante no trabalho e, as crianças, por sua vez, curtem devido ao presente sufocante da escola, sendo adestradas para agirem da mesma forma daqui a uns anos, quando se tornarem empresários de si.

Conclusão

Claro que devemos aproveitar nossas férias. Mas é interessante refletir o fato de que a diversão sempre foi objeto de poder. Durante o período da Guerra Fria, o entretenimento era controlado pelo poder tanto na URSS quanto nos EUA. Um manipulava a diversão para propósitos coletivistas e outro para propósitos individualistas.

A questão é que o fetichismo da “mercadoria-férias” transforma o trabalhador em um ser diferente quando está na posição de consumidor. Porque ele não vê o trabalho contido na mercadoria, apenas a sua imagem final, a beleza inebriante que esconde todo o processo brutal de exploração do ser humano. Karl Marx diz que “a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens”.[13] A relação entre os trabalhadores que produziram a mercadoria é substituída pela relação do trabalhador com o objeto produzido. É assim que o consumo desconfigura a consciência de classe.

São aproximadamente onze meses de trabalho para se poder tirar férias. Onze meses para produzir a mercadoria-férias. Mas tal mercadoria oculta (como todas as outras mercadorias) o tempo de trabalho gasto para produzí-la, a mais-valia que sustentará o lazer peremptório de quem explora o trabalho alheio. Ocultar o fato de que o valor de uma mercadoria está relacionado ao tempo de trabalho é o principal objetivo da burguesia. Suas férias custam de fato onze meses de trabalho?

Por outro lado, as férias se tornaram mais um produto para se exibir, como um carro ou uma roupa, do que um desfrute em si. E com as redes sociais, as férias se tornaram, também, trabalho, já que estamos produzindo (gratuitamente) conteúdo para os anunciantes que pagam as Big Techs. Nossos posts felizes são o petróleo dos capitalistas que controlam as redes sociais. Esses anunciantes vão mostrar para você produtos de férias como restaurantes, preços de viagens, sugestões paradisíacas etc.. Sendo assim, o trabalhador só irá desfrutar legitimamente de suas férias quando esta deixar de ser de fato uma mercadoria….

[1]ROSENWEIN, B. História das emoções: problemas e métodos. São Paulo: Letra e voz, 2011, p. 7.

[2]CHARAUDEAU, P. A patemização na televisão como estratégia de autenticidade. In: MENDES, E. e MACHADO, Ida L. (Orgs.) As emoções no discurso. Vol.2. Campinas: Mercado de Letras, 2010, p. 29.

[3]MARZANO, A. e MELO, Victor A. de. Apresentação. ____. (Orgs.) Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Aricuri, 2010, p. 11.

[4]BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 23.

[5]https://www.bbc.com/portuguese/articles/cye4ll78l3wo

[6]ILLOUZ, Edgar C. Happycracia. São Paulo: Ubu, 2022, p. 57.

[7]MINOIS, G. A Idade de Ouro: história da busca da felicidade. São Paulo: EdUnesp, 2011, p. 409.

[8]BUCCI, E. A superindústria do imaginário. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 70.

[9]VIGARELLO, G. História da fadiga. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 425.

[10]SNYDERS, G. Alunos felizes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 14.

[11]LOCKMANN, K. Assistência social, educação e governamentalidade neoliberal. Curitiba: Appris, 2019, p. 143.

[12]Idem, p. 146.

[13]MARX, K. O Capital. Livro 1, vol. 1, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 94.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.