CINEMA

Apanhado do cinema 2023 – Por Cesar Castanha

O cinema do ano passado denuncia, para mim, um processo de transição no cinema mundial

Créditos: Tima Miroshnichenko/Pexels
Escrito en OPINIÃO el

O cinema do ano passado denuncia, para mim, um processo de transição no cinema mundial. As múltiplas expressões de realismo (um realismo inventivo e pleno de força estética) que tomaram a década de 2010 parecem estar se inclinando para fora das crônicas cotidianas e familiares e em direção a um novo potencial do cinema como fabulação. Em parte, isso deriva de diretores que sempre apostaram nas fabulações e artifícios do cinema apresentando alguns de seus melhores e mais sofisticados trabalhos, como Victor Erice (Cerrar los ojos), Todd Haynes (Segredos de um escândalo) e Wes Anderson (The swan, The wonderful story of Henry Sugar e Asteroid City).

Por outro lado, foram abraçados pela crítica global uma série de trabalhos que experimentam com intercessões entre as formas do real e os imaginários do cinema, como os argentinos Trenque Lauquen (dir. Laura Citarella) e Os delinquentes (dir. Rodrigo Moreno) e o romeno Não espere demais do fim do mundo (dir. Radu Jude). Como as listas a seguir demonstram, essa transição me toma de entusiasmo, e o ano de 2023 aparece para mim como um dos melhores anos, tendo principalmente em perspectiva o cinema mundial. A falta de disponibilidade de muitos desses filmes expõe também a dificuldade de distruibuidoras e serviços de streaming de dar o devido espaço e destaque para novas linguagens. A retomada da cota de tela para filmes brasileiros é uma etapa importante para a inserção de produções mais diversas nos meios de exibição, mas é preciso considerar também a necessidade de investimento em publicidade para o cinema nacional e regulação das plataformas de streaming. Todas essas ações políticas têm que ter em vista que é muito importante para a democracia produzir um cinema diverso, de pluralidade artística, e é igualmente importante que o cinema produzido seja amplamente visto. Vamos às listas.

Os quatro primeiros filmes desta lista estão entre os meus preferidos da década até agora. Cerrar los ojos utiliza a autorreferência como um artifício reflexivo sobre o cinema e o seu potencial de agir na maneira como nos compreendemos no mundo; Segredos de um escândalo radicaliza o interesse do seu diretor pelo melodrama em uma linguagem entregue sem restrições ao excesso e às distorções que ele pode provocar; Trenque Lauquen é um filme de mistério e uma história de amor que se encontram para pensar a maneira como criamos laços afetivos com o gesto de contar e ouvir histórias; e Esculturas da vida se compromete com as fruições estranhas de fazer arte, em seus acidentes, procrastinações e ânsia criativa.

Filme:

Cerrar los ojos

Segredos de um escândalo

Trenque Lauquen

Esculturas da vida

Sem ursos

The swan

Rio Doce

Os delinquentes

Não espere demais do fim do mundo

Apolonia, Apolonia

Direção:

Victor Erice (Cerrar los ojos)

Todd Haynes (Segredos de um escândalo)

Kelly Reichardt (Esculturas da vida)

Wes Anderson (The swan)

Laura Citarella (Trenque Lauquen)

Atriz:

Natalie Portman (Segredos de um escândalo)

Lily Gladstone (Assassinos da lua das flores)

Dominique Fishback (Enxame)

Park Ji-Min (Retorno a Seul)

Ilinca Manolache (Não espere demais do fim do mundo)

Manolo Solo tem o trabalho mais difícil dos atores de Cerrar los ojos, atuar como o sujeito que dirige o olhar e a partir desse olhar constrói a trajetória dura de seu personagem; Kieran Culkin produz uma dos gestos mais impactantes de toda Succession, a do príncipe tomado por luta e culpa, lançando-se à multidão em revolta, pra mim a grande cena do audiovisual deste ano; e Steven Yeun carrega muito bem o peso da sequência de absurdos e excessos narrativos da excelente Treta.

Ator:

Manolo Solo (Cerrar los ojos)

Kieran Culkin (Succession)

Steven Yeun (Treta)

Franz Rogowski (Passagens)

Jeremy Strong (Succession)

Saint Omer é um filme baseado na forma do depoimento e da escuta que é organizado pela encenação de um tribunal. Nesse sentido, ele se difere de Anatomia de uma queda de maneira interessante. Enquanto o segundo busca destrinchar o palco do tribunal e a revelação de cada momento como performance, Saint Omer busca se envolver com esse modo cênico do tribunal e de fato mergulhar nele e na sua potência narrativa e performática. Desta última, temos a atuação de Guslagie Malanda como uma acusada que não esconde o crime, mas que ainda demanda narrar e ser ouvida. É um trabalho de atuação quase experimental o que ela apresenta, cruzando uma cadência do teatro grego (é uma Medea que ela interpreta, afinal) com um trabalho expressivo atento à decupagem do cinema.

Atriz coadjuvante:

Guslagie Malanda (Saint Omer)

Julianne Moore (Segredos de um escândalo)

Scarlett Johansson (Asteroid City)

Ayo Edebiri (The bear)

Sarah Goldberg (Barry)

Se todo personagem em Segredos de um escândalo está interpretando um personagem (e esse é um pouco do bom trabalho exercido pelo filme em sua reflexão sobre a crise de domesticidade), o de Charles Melton é o trabalho que mais depende da sutileza dentro do emprego do artifício ao interpretar um homem no papel (tão absurdo que chega a ser doloroso) de um pai de família; em Succession, Matthew Macfadyen apresenta uma conclusão machadiana para o seu personagem, um sujeito do fracasso que é bem sucedido por conveniência; e Brian Cox, na mesma série, é a figura central de um prólogo não anunciado, e interpreta a sua despedida como um Rei Lear arrependido e em silencioso sofrimento.

Ator coadjuvante:

Charles Melton (Segredos de um escândalo)

Matthew Macfadyen (Succession)

Brian Cox (Succession)

Robert De Niro (Assassinos da lua das flores)

Ben Whishaw (Passagens)

A beleza de Jury duty está no trabalho do elenco. Um conjunto de atores não profissionais ou que estão lutando para encontrar trabalho na indústria é selecionado para uma experiência tão radical de atuação que eles estão a cargo de sustentar um universo ficcional inteiro para um de seus colegas (o único alheio da ficção criada). A conclusão da série, em que cada um desses atores pouco conhecidos se apresenta individualmente, emocionou-me como poucas coisas do audiovisual em 2023. Atuar é um dos trabalhos mais duros de Hollywood. Se você não está em posição de escolha, é forçado a um conjunto de personagens que não possibilitam espaço para a criação, Jury duty é uma ode ao exercício criativo dos character actors, elenco de apoio, figurantes e atores de improviso, e é isso que torna a série uma das produções mais interessantes do ano.

Elenco:

Jury duty

Succession

Assassinos da lua das flores

How to have sex

Babilônia

How to have sex é um filme que acompanha um conjunto de adolescentes sozinhas em uma viagem para o litoral semelhante às “férias de primavera”. Coreografar essas personagens envolve a dificuldade de coordenar para a cena corpos que estão, no momento representado pelo filme, em uma experiência de perda de controle. Além disso, a abordagem do filme para as aproximações e investidas sexuais (algumas delas não consensuais) entre os personagens exige um rigor com o trabalho de corpo para produzir a dimensão afetiva complexa que os corpos cênicos estão projetando entre si.

Trabalho coreográfico:

How to have sex

Missão impossível: acerto de contas, parte 1

Segredos de um escândalo

The swan

John Wick 4: Baba Yaga

Cerrar los ojos é um filme sobre o cinema que segue a estrutura de um filme de investigação. Sua metalinguagem, assim, a parece a partir do escrutínio do olhar que se dirige a um filme interrompido, a um diretor que parou de fazer filmes e a um ator que desapareceu entre uma cena e outra. O texto do filme fica a cargo de estruturar o percurso desse diretor de volta à imagem perdida do filme não concluído e, assim, conduzir todos os personagens (e espectadores, de certo modo) de volta a essa imagem, devolver-nos à imagem para que junto a ela possamos dizer quem somos.

Roteiro em filme:

Cerrar los ojos

Sem ursos

Esculturas da vida

Asteroid City

Rio Doce

Roteiro em série:

“Igreja e Estado”, Succession

“A América decide”, Succession

“Fishes”, The bear

“Brooke apresenta a Noite de Fazer o Bem”, The other two

“De olhos abertos”, Succession

Montagem:

Trenque Lauquen

Segredos de um escândalo

Apolonia, Apolonia

Os delinquentes

Não espere demais do fim do mundo

O mundo de Asteroid City é o de um cenário sem fim sobre um palco de teatro. Qualquer trabalho fotográfico do filme deve ser um trabalho aliado a essa concepção de mundo e à execução desse cenário pela direção de arte. É a fotografia, no entanto, que garante essa qualidade de luz muito precisa para o universo do filme: tão limpa e luminosa que parece algo ficcional (como é, dentro do filme), mas ao mesmo tempo fazendo um tipo de referência ao calor e à luminosidade interiorana que um palco de teatro não teria condições materiais de fazer.

Fotografia:

Asteroid City

Cerrar los ojos

John Wick 4: Baba Yaga

Os delinquentes

Segredos de um escândalo

Em Segredos de um escândalo, Todd Haynes leva o compositor Marcelo Zarvos a adaptar para o filme a trilha sonora composta por Michel Legrand para O mensageiro (dir. Joseph Losey, 1971). Essa adaptação (e também as composições originais de Zarvos que a acompanham) fazem da trilha do filme um dos trabalhos mais originais desse tipo nas últimas décadas do cinema estadunidense. A música é estranha e inquietante, ela distorce a imagem e confronta a sua transparência, cumprindo um papel fundamental no regime de excessos do filme.

Trilha sonora:

Segredos de um escândalo

Babilônia

Assassinos da lua das flores

Trenque Lauquen

Asteroid City

Barbie não é exatamente um filme musical, mas apresentou algumas das melhores composições originais do ano justamente pela maneira como as músicas foram incorporadas formalmente e narrativamente pelo filme. “What was I made for?” acompanha o ápice temático do filme, quando Barbie, como personagem, boneca, lida com um desejo de existência e das fragilidades da existência, um desejo que ela comunica como uma vontade de criar, de existir para criar. Esse é um tema que apareceu antes na filmografia de Gerwig com o seu tratamento para Louisa May Alcott em Adoráveis mulheres (2019) e que pra mim é o ponto de maior força de Barbie.

Música:

“What was I made for?”, Barbie

"Which of the Pickwick triplets did it?", Only murders in the building

"Dear Alien (who art in heaven)", Asteroid City

"Wahzhazhe (a song for my people)", Assassinos da lua das flores

"Talk to Daddy", Schmigadoon

As interrupções excessivas da trilha que cresce sobre as representações do filme e as rasgam com forma sonora, audiovisual, marcam o desenho de som de Segredos de um escândalo; Babilônia é um filme operístico que atravessa uma década da antiga Hollywood para narrar a história de um modo de existir e de encenar, inclusive de encenar o som; Frevo Michiles, documentário sobre o compositor de frevo Jota Michiles, tem um trabalho de som apurado e rigoroso, como se destaca nos encontros familiares mergulhados no frevo e no violão.

Som:

Segredos de um escândalo

Babilônia

Frevo Michiles

John Wick 4: Baba Yaga

Cerrar los ojos

Série ou minissérie:

Succession, quarta temporada

Mrs. Davis

The bear, segunda temporada

Jury duty, primeira temporada

The other two, terceira temporada

Se The wonderful story of Henry Sugar se destaca como anúncio de uma proposta coautoral intermidiática de Wes Anderson (executada com sofisticação em cada escolha de plano), então The swan é a razão de ser dessa empreitada, um curta sobre o poder do mais fraco encenado como um relato teatral em uma interpretação tomada de emoção por Rupert Friend. A dog called Discord, enquanto isso, é uma homenagem à película e aos fantasmas guardados pelas materialidades do cinema.

Curta ou média-metragem:

The swan (dir. Wes Anderson)

The wonderful story of Henry Sugar (dir. Wes Anderson)

A dog called Discord (dir. Mark Jenkin)

Quebra panela (dir. Rafael Anaroli)

Moventes (dir. Jefferson Cabral)

Apolonia, Apolonia é uma narrativa mediada por uma amizade de 13 anos, transformada em um filme de 2 horas que apresenta a história de suas três personagens como irmãs improváveis de um drama global; Retratos fantasmas é um ensaio íntimo sobre o amor por uma cidade que segue existindo, através do tempo, dos filmes e dos prédios de vida e de cinema.

Documentário:

Apolonia, Apolonia

Retratos fantasmas

A dog called Discord

Frevo Michiles

We no longer prefer mountains

Scott Pilgrim takes off toma liberdades com os quadrinhos originais e um filme muito querido para contar uma nova história contando com o carisma de seus personagens secundários; Nimona, outra adaptação, apropria-se do imaginário das histórias de cavalaria para apresentar um conto de subversão e desobediência; Homem-Aranha: através do Aranhaverso tem boa razão de ser um dos eventos cinematográficos do ano, com arte inventiva e um dos textos mais interessantes a usar a (já recorrente) narrativa de multiverso.

Animação:

Scott Pilgrim takes off

Nimona

Homem-Aranha: através do Aranhaverso

The garden of heart

Screecher’s Reach

As colaborações do diretor de arte Adam Stockhausen com Wes Anderson estão se mostrando tanto mais diversas quanto excelentes. Aqui, as artes de The swan e Asteroid City ainda se distinguem no que cada filme pede a elas. Ainda que ambas sejam baseadas nos artifícios intermidiáticos do cinema, a primeira se envolve com esse espaço como um palco precário, tomado por uma neblina invisível, mas não menos presente, que dá ao filme uma qualidade climática própria, como o veraneio constante de Asteroid City. Sou fascinado com a forma paisagística que Stockhausen dá a esses palcos de teatro, a esses espaços duas vezes encenados, uma vez na ficção interna dos filmes e mais uma vez como cinema.

Direção de arte:

The swan

Asteroid City

Babilônia

The wonderful story of Henry Sugar

Homem-Aranha: através do Aranhaverso

Cenografia:

The wonderful story of Henry Sugar

The swan

Babilônia

Asteroid City

Esculturas da vida

Seria um equívoco, a meu ver, acessar Babilônia com uma expectativa de fidelidade a uma época. O filme é muito inteligente na sua convocação mista de comentário histórico (sempre anacrônico) e excesso irreal. O seu trabalho de figurino é inventivo e ajuda a compor a textura muito especial que o filme tem e precisa sustentar para funcionar como esse tipo de épico sobre Hollywood. Realizar o figuro como produto de uma pesquisa é interessante; usar dele para construir uma personagem e um entendimento sobre a narrativa dela, como em Priscilla, também. Pensar o figurino como forma, como textura imagética, no entanto, tende a contribuir com a audiovisualidade dos filmes e a valorizar a sensorialidade.

Figurino e maquiagem:

Babilônia

Asteroid City

Priscilla

Passagens

A morte do demônio: a ascensão

Videoclipe:

“On my mama”, Victoria Monet (dir. child.)

“Back on 74”, Jungle (dir. J Lloyd e Charlie Di Placido)

“greedy”, Tate McRae (dir. Aerin Moreno)

Menção honrosa:

Ao cinema palestino. Quando a colonização, o apartheid, a desumanização e o genocídio são justificados por uma negação mentirosa e ahistórica da cultura palestina, o cinema palestino ajuda a criar um arquivo dessa cultura, com a inventividade de diretores tão diversos quanto Elia Suleiman, Larissa Sansour, Kamal Aljafari, Mai Masri, Michel Khleifi, Hany Abu-Assad e muitos outros, que usam do cinema como testemunho e, às vezes, como utopia.