1. No aniversário de cem anos de Lenin, qual foi a sua principal herança teórica? Lenin elaborou a ideia do partido como a defesa de um programa, mas, também, como um instrumento político para a ação. Qual é o lugar do partido marxista entre as outras organizações do movimento social e político dos trabalhadores? O papel do partido era de alavanca. Na física a alavanca é o objeto que multiplica a força mecânica. Na elaboração leninista o partido é a ferramenta que através da agitação política, da propaganda socialista e, sobretudo, da intervenção direta nas lutas, pode acelerar a experiência prática de milhões. O partido é um coletivo militante que reúne as lições da experiência histórica da classe trabalhadora, e um instrumento para a construção da consciência de classe: o salto da “classe em si” em “classe para si”. Seu papel é estimular entre os explorados uma disposição de luta pelo poder, transformando o “instinto” de classe em “instinto” de poder.
Construir instrumentos coletivos de luta, sindicais e políticos grandes é uma necessidade incontornável para os explorados e oprimidos. Os movimentos, associações, sindicatos ou partidos das classes, politicamente, dominadas, em primeiro lugar, têm que lutar contra a influência dos inimigos de classe nas suas próprias fileiras. Por outro lado, as condições da disputa por influência na sociedade são dramaticamente desiguais, porque o poder não emana somente do Estado, mas do controle da riqueza social, dos meios de comunicação, das forças de coerção armadas, etc.
A preservação da ordem política e social através de outros instrumentos, que não a coerção e intimidação da força do aparelho do Estado, sempre foi valorizada na tradição marxista. Mas a relação recíproca entre os diferentes mecanismos de dominação, vem se alterando historicamente, o que é menos lembrado. Claro que seria ingênuo diminuir o papel inibidor ou dissuador da ameaça ou chantagem que a presença das Forças Armadas realiza, depois de tantas dezenas de sangrentos golpes de Estado.
Mas o lugar da mídia, no início do século XX, quando a imprensa era de longe o principal meio de comunicação, e algo entre um terço e a metade dos trabalhadores nos países centrais eram iletrados, e o lugar da televisão, na sociedade contemporânea, em que na mairia dos países urbanizados, mais de 90% das residências têm luz elétrica, um aparelho de televisão, acesso à internet, celulares e acesso às redes sociais é, qualitativamente, diferente. Os novos recursos de luta ideológica são, desproporcionalmente, mais poderosos.
Essas pressões se abatem de uma forma devastadora sobre as representações políticas das classes populares, no sentido da adaptação. São um obstáculo imenso para a afirmação de lideranças que correspondam aos interesses dos seus representados, tanto mais que o humor dos despossuídos, em situações defensivas, se inclina, invariavelmente, no sentido da resignação moral e da prostração política.
A revolução socialista era pensada, pelo marxismo. como a primeira revolução de maioria para a maioria. Nunca tinha acontecido na história uma revolução socialista vitoriosa. A experiência mais avançada tinha sido a efêmera Comuna de Paris em 1871. A questão da luta pelo poder exigia uma elaboração estratégica nova. Que lições podiam ser retiradas da derrota da Comuna de Paris? Que desafios estavam colocados para os socialistas na Rússia do início do início do século XX na luta para derrubar a mais arcaica e tirânica ditadura da Europa?
Em O que fazer? Lenin realizou uma síntese entre a experiência alemã, e as peculiaridades da luta clandestina e legal na Rússia. Trabalhemos com um exemplo clássico, extraído de Deutscher, para uma ilustração dos termos da questão:
A História esclarece duas grandes “crises internas" do bolchevismo no ano da revolução. Na primeira, Lênin, que acabara de voltar da Suiça, apresenta suas “Teses de Abril” e "rearma" poIíticamente o seu partido para a guerra contra o regime de fevereiro; na segunda, no penúltimo estágio da revolução, os defensores e adversários da insurreição se enfrentam mutuamente no Comitê Central bolchevique (...) Tanto em abril como em outubro Lenin fica quase que sozinho, incompreendido e renegado pelos seus discípulos. "Lenin não confiava no Comite Central – sem Lenin.", comenta Trotski, e "Lênin não estava muito errado nessa desconfiança". Sua ousadia, realismo e vontade concentrada surgem da narrativa corno os elementos decisivos do processo histórico, pelo menos da mesma importância que a luta espontânea de rnilhões de trabalhadores e soldados. Se a energia destes foi o "vapor" e o partido bolchevique o "êmbolo" da revolução, Lênin foi o condutor. Trotski enfrenta, aqui, o problema clássico da personalidade na História e talvez tenha menos êxito” (grifo nosso)
Trotsky chegou atrasado, mas depois da revolução de outubro, passou a ser um “superleninista”. Mas, talvez, se exagerou na análise, apontou na direção certa. Os excessos opostos de objetivismo exacerbado alimentaram ilusões mais graves. O lugar da subjetividade, e o papel do indivíduo na História que é a sua forma “última”, é um tema espinhoso para o marxismo. E isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque a historiografia política liberal - das cronologias dos acontecimentos - sublinhava de tal maneira o lugar das grandes personalidades que a História tinha se transformado em um ramo colateral da narrativa biográfica.
O marxismo se afirmou em uma luta irreconciliável contra essas concepções, colocando a ênfase da explicação nas articulações “subterrâneas” dos conflitos econômico-sociais. Mas, nem sempre conseguiu escapar do erro simétrico, que seria pensar a História, somente, como um processo evolutivo/convulsivo anódino e anônimo, de mudança de “estruturas sociais”.
A reação a esses excessos e à influência “objetivista” do estruturalismo não se fez esperar, quando vários ex-marxistas se fizeram arautos das novas teses, desvalorizadoras das “grandes sínteses”, e insistiram na importância da incerteza, do aleatório e do acidental. O pós-modernismo radicalizou, em um outro extremo, a reivenção do subjetivismo e da história como mais um forma de narrativa.
Em segundo lugar, porque uma das monstruosidades do século XX foi a generalização abjeta do culto à grande “personalidade”, uma liturgia sinistra da política monolítica, um método de exercício do poder próprio de déspotas asiáticos, elevada a política de Estado, pelo estalinismo, feita em nome do socialismo. Com mais razão, portanto, depois dessa tragédia, haveria que guardar mil reservas contra os excessos subjetivistas, ou interpretações messiânicas, de partidos ou lideranças. Os “fevereiros”, por analogia om a revolução russa de 1917, não foram antessalas de “outubros”. Mesmo com a radicalização popular aberta pela vitória do “momento” democrático não veio o “momento” anticapitalista”, a revolução na revolução. Por quê? Muitos fatores diferentes em cada processo, mas o elemento comum é que faltaram os leninistas. Revoluções socialistas não triunfam sem revolucionários.
Mas, na etapa em que viemos, de decadência do capitalismo, não é provável a estabilidade de regimes democráticos, como prevaleceu depois da Segunda Guerra Mundial nos países centrais e, depois da restauração capitalista na URSS, nos países menos atrasados da periferia, como na América Latina. A hipótese mais provável é que o perigo de governos de extrema-direita, animados por correntes neofascistas, subvertam as liberdades democráticas.
2. O principal legado do leninismo foi a elaboração sobre a necessidade do partido revolucionário. Plekhanov foi um dos primeiros a se opor ao desafio colocado pela fração bolchevique. Ao se referir ao tema está abordando, ainda que indiretamente, a questão dos fatores de subjetividade na história. Sua aproximação ao problema é radicalmente objetivista.
O objetivismo é sempre uma desvalorização do voluntarismo. Leninismo é máximo voluntarismo, embora não substitucionismo. A principal premissa na análise de Lenin sobre o partido foi que as margens de improviso político se estreitaram em função de muitos fatores. O principal é que as classes dominantes aprendem, e muito rapidamente, com a experiência de suas derrotas. Revoluções são sempre, em alguma medida, uma surpresa histórica.
Ser leninista é admitir que existe uma assimetria estrutural nas condições em que as classes populares lutam pela defesa de seus interesses. Têm que se emancipar dos fantasmas do passado e dos pesadelos que naturalizam a sua exploração, e esmagam a sua consciência. Essa libertação só é possível no terreno da experiência de milhões no duro terreno de uma impiedosa luta de classes. Mas a construção da consciência de classse é um caminho menos acidental, se as massas encontram um ponto de apoio. A qualidade das organizações que constroem faz diferença.
Ao sublinhar que a luta de classes é, entre outros conflitos que dilaceram o mundo capitalista, a força motriz mais relevante para o destino das sociedades, o marxismo não concluiu que os trabalhadores sempre sabem o caminho onde repousa a defesa de seus interesses. Isso seria absurdo. Existe uma defasagem ou desencontro entre os interesses, e a capacidade de construir representações coerentes para a sua defesa. Essa dissonância atinge todas as classes, mas não por igual.
As burguesias desenvolveram, em uns países mais, em outros menos, uma enorme cultura e habilidade política. A maior importância da política como atividade de legitimação do exercício de poder é umas chaves das mudanças dos últimos cem anos. Esta necessidade inexistia como uma atividade laica de disputa de projetos para a sociedade, pelo menos, antes do século XVIII. Nas sociedades pré-capitalistas, a legitimidade do poder não repousava em um consenso político, que deve expressar, de alguma maneira, ainda que na aparência, uma “vontade” da maioria do povo. As fontes de legitimação das monarquias eram outras.
No século XX, o poder deve procurar legitimidade no terreno da política: em termos gramscinianos, deve dirigir além de dominar. O que nos diz Plekhanov?
Além disso, é necessário fazer notar o seguinte: discorrendo sobre o papel das grandes personalidades na história, somos vítimas, quase sempre, de uma certa ilusão de óptica (...) Ao desempenhar o seu papel de “boa espada” salvadora da ordem social, Napoleão afastou assim dessa função todos os outros generais, alguns dos quais talvez a tivessem desempenhado tão bem ou quase tão bem como ele. (...)Essa força pessoal parece-nos algo absolutamente excepcional, porque as demais forças idênticas a ela não se transformaram de forças potenciais em reais. E quando nos perguntam que teria acontecido, se Napoleão não tivesse existido, a nossa imaginação confunde-se e parece-nos que sem ela não poderia produzir-se todo o movimento social sobre o qual se baseava a sua força e a sua influência.” (grifo nosso)
Plekhanov apresenta uma resposta, pelo menos, incompleta ao problema. No mínimo, haveria que dizer que suas conclusões envelheceram, porque foram incapazes de apreender uma dinâmica que já se desenvolvia, ainda que embrionariamente, diante de seus olhos. Isso por, pelo menos, três razões: primeiro, porque ignora que o lugar dos fatores de subjetividade vem se alterando historicamente. A própria existência e maior complexidade dos partidos, no século XX, responde à necessidade de todas as classes de diminuir as improvisações na construção de lideranças. Indivíduos erram mais do que coletivos.
Em segundo lugar, precisa ser considerado que os fatores de subjetividade não operam por igual e nas mesmas proporções em todas as situações políticas. Circunstâncias excepcionais, colocam necessidades excepcionais: não é difícil compreender que o lugar dos sujeitos políticos coletivos ou mesmo das lideranças individuais, se coloca de uma maneira muito diferente, quando a luta de classes segue um rumo previsível, e uma forma tranqüila, sem maiores percalços, do que quando ela se exacerba em torno a combates decisivos, em que a questão do poder está, de alguma maneira, em suspenso, como a possibilidade de transformações revolucionárias.
Em terceiro lugar, o problema da subjetividade não se coloca da mesma forma para todas as classes da sociedade. Plekhanov parte da premissa que todas as classes, sejam exploradoras ou exploradas, proprietárias ou não proprietárias, sob a pressão da necessidade, resolvem a questão da sua representação política e constroem, sem maiores distorções ou atrasos históricos, os sujeitos políticos para a defesa de seus interesses. Essa premissa é inteiramente falsa. As classes exploradas e oprimidas encontram dificuldades incomparavelmente maiores para conquistarem a sua independência política, e construírem os seus próprios partidos do que as classes dominantes.
Esse desafio é de importância vital, portanto, vida ou morte, diante da ofensiva extremista de tipo neofascista que vem sendo abraçada por frações burguesas em escala internacional, conquistando apoio majoritário em camadas médias proprietárias acomodadas, ou um programa de “guerra civil” para impor uma derrota histórica aos trabalhadores. O tempo não corre a nosso favor.
[1] (DEUTSCHER, Isaac, Trotsky, O Profeta Banido, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984, p.250)
[2] O Pós-modernismo teve tido uma influência maior do que se poderia supor em uma análise ligeira, pela sua repercussão nas ciências sociais no Brasil. A crítica de toda perspectiva utópica, o elogio da incerteza, o hedonismo céptico, a desvalorização das possibilidades das transformações coletivas, o desprezo, senão desconfiança, em relação aos sujeitos sociais populares, e, sobretudo, uma overdose de subjetivismo, tudo isso é inseparável, do efeito devastador da crise do socialismo. A localização histórica do pós-modernismo, tanto no terreno da discussão estética, como da crítica da razão científica moderna, e por essa via, antagônica com o marxismo, pode ser encontrada em Perry Anderson.: “Nessas condições, a ciência virou apenas um jogo de linguagem dentre outros: já não podia reivindicar o privilégio imperial sobre outras formas de conhecimento, que pretendera nos tempos modernos. Na verdade, sua pretensão a superioridade como verdade denotativa em relação aos estilos narrativos do conhecimento comum escondia a base de sua própria legitimação, que classicamente residiu em duas formas grandiosas de narrativa A primeira, derivada da Revolução Francesa, colocava a humanidade como agente heroico de sua própria libertação através do avanço do conhecimento; a segunda, descendente do idealismo alemão, via o espírito como progressiva revelação da verdade. Esses foram os grandes mitos justificadores da modernidade. O traço definidor da condição pós-moderna, ao contrário, é a perda da credibilidade dessas metanarrativas.”
ANDERSON, Perry, As Origens da Pós-Modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p.32.
[3] PLEKHANOV, George, O Papel do Indivíduo na História, Lisboa, Antídoto, 1977, p.69.
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