STF

A esquerda curvou-se em silêncio à vontade de Lula. Veio Zanin. Por Mauro Lopes

Os votos de Zanin em 23 dias no STF estão deixando a esquerda indignada. Mas o fato é que ela silenciou durante todo o processo até a nomeação do ex-advogado de Lula. Agora, o país paga a conta. O voto mais recente de Zanin: a favor do genocídio dos povos Guarani e Kaiowá no MS

Zanin no STF.Créditos: Carlos Moura/STF
Escrito en OPINIÃO el

Obs: quando este artigo foi escrito na noite de sexta-feira (25) eu não havia incluído mais dois votos de Zanin que beiram o inacreditável: ele foi o voto decisivo para que o STF estabelecesse as Guardas Municipais como forças de segurança, PMs em nível municipal. E aquele que talvez seja o mais grave de todos os votos: Zanin votou para que o STF ignorasse uma ação da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) que pedia uma intervenção da Corte para bloquear a ação genocida da Secretaria de Segurança/PM do Mato Grosso do Sul contra os povos Guarani e Kaiowá. 

* * * 

Numa velocidade estonteante, Cristiano Zanin disse a que veio.

Em 3 de agosto, tomou posse. Em apenas 23 dias, empilhou SEIS decisões, uma atrás da outra, que o destacam como o mais reacionário ministros da Corte desde a redemocratização do país (veja a lista mais abaixo e confira). Talvez apenas Nunes Marques o ombreie na duvidosa honra. Mas, mesmo o nomeado por Bolsonaro não colecionou tantas decisões retrógradas como o novato. 

Uma Fama a Jato.

A lista é impressionante. Zanin votou:

  1. contra aplicação do princípio da insignificância para dois homens que furtaram objetos de valor inferior a 100 reais (é o relator do caso na 1ª Turma);
  2. a favor de os juízes poderem julgar casos de escritórios onde trabalham seus parentes;
  3. contra equiparação de atos de homofobia e transfobia ao crime de injúria racial (equiparação, foi aprovada por 9 votos contra o de Zanin nem Nunes Marques ousou a afronta);
  4. contra a descriminalização da maconha para uso pessoal (até agora, o único ministro com este voto, dentre os 6 que já votaram).
  5. a favor da definição das Guardas Municipais como integrantes do sistema de segurança pública - elas passam a ser “mini PMs”. Segundo o jurista Pedro Serrano, a decisão, “além de inconstitucional , é um imenso erro social e institucional”. Zanin foi o voto decisivo -o placar foi 6 a 5
  6. contra a análise, pelo STF, de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) impetrada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A ação pede que cessem as violências de caráter genocida cometidas contra os povos Guarani e Kaiowá pela Secretaria de Segurança/PM do Mato Grosso do Sul. Para que se tenha uma ideia, entre os pedidos da Apib está o fim dos ataques (com tiros e bombas) a partir de helicópteros e drones. A própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) manifestou-se pela condenação às operações. Zanin, não. Ao lado de Zanin, na votação, Nunes Marques, André Mendonça e o relator, Gilmar Mendes. Foram derrotados, felizmente.

Veja o quadro da votação no caso do apelo da APIB em nome dos povos  Guarani e Kaiowá:

Uma onda de indignação percorreu todos os segmentos progressistas, de advogados a jornalistas, defensores de direitos humanos, parlamentares e ativistas. Zanin já se converteu em herói para a extrema direita, sendo alvo de fartos elogios na última quinta (24), em jantar da Associação Brasileira de Juristas Conservadores, entidade controlada pelos bolsonaristas. 

Há as pessoas que estão surpresas, atônitas. Mas não há motivo para tanto. Os posicionamentos da “esfinge Zanin”, nos meses que antecederam sua escolha por Lula e, sobretudo, na sabatina no Senado, já indicavam o que viria -a surpresa deveria restringir-se, no máximo, a quem acompanhou o processo de escolha, à intensidade da carga reacionária das decisões do novo ministro.

Com seus seis votos, Zanin já pode ser considerado o mais reacionário dos ministros do STF desde a redemocratização. Nem mesmo os ministros de Bolsonaro são páreo para ele. Veja a lista e constate:

Indicados por José Sarney: Carlos Madeira, Célio Borja, Paulo Brossard, Sepúlveda Pertence e Celso de Mello.

Indicados por Fernando Collor: Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ilmar Galvão e Francisco Rezek.

Indicado por Itamar Franco: Maurício Corrêa.

Indicados por Fernando Henrique Cardoso: Nelson Jobim, Ellen Gracie e Gilmar Mendes.

Indicados por Lula (I e II): Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Menezes Direito e Dias Toffoli.

Indicados por Dilma Rousseff: Luiz Fux, Teori Zavascki, Rosa Weber, Roberto Barroso e Edson Fachin.

Indicado por Michel Temer: Alexandre de Moraes.

Indicados por Jair Bolsonaro: Nunes Marques e André Mendonça.

 

A esquerda submissa e medrosa

 

Com raríssimas exceções, a indicação de Zanin por Lula navegou por meses sem vozes críticas.

Foi um rolo compressor. 

Divulgou-se que a decisão sobre o nome do ministro deveria ser uma  “escolha pessoal de Lula”. Trata-se de uma expressão tautológica. Toda escolha é pessoal. Até em situações extremas, como numa sessão de tortura, há escolha pessoal. Falar ou não falar? 

Portanto, a ideia de que seria uma “escolha pessoal” de Lula não dizia nada. Na verdade, do que tratou todo o tempo, era a defesa -feita por setores majoritários da esquerda- de que Lula teria “o direito” de definir o nome do indicado sozinho, conforme seus desejos e humores. 

Mas Lula não estava decidindo o nome de um assessor pessoal seu, cujo desempenho e decisões afetam o âmbito das relações palacianas, no máximo. O que estava em jogo era a definição de um nome cujas decisões têm efeitos sobre a vida de milhões de pessoas. Por qual razão um presidente da República num país democrático deveria “decidir sozinho” e segundo critérios de foro íntimo -no caso, um gesto de gratidão a seu advogado- a nomeação para um posto de tamanha repercussão? E mais: os efeitos desta decisão podem se prolongar por até 27 anos (tempo em que Zanin poderá ocupar uma cadeira no STF). 

Argumentou-se que Zanin teve um papel de suma importância para a solução final do caso que permitiu a Lula concorrer novamente à Presidência. É verdade. Mas, por meses, raras foram as pessoas que levantaram a mão para dizer: “está bem, mas ele foi remunerado, e muito bem remunerado para isso”. Zanin recebeu muito dinheiro (e fama) para defender a causa de Lula. Milhares de pessoas na Vigília Lula Livres e milhões de pessoas ao redor do país mobilizaram-se para defender a causa de Lula sem receber um tostão, ao contrário, gastando no mais das vezes seus parcos recursos para isso. Por qual razão o único premiado deveria ser um advogado rico? Foi o que aconteceu. 

Foi um silêncio ensurdecedor, motivado por respeito a Lula, pelo cordão dos puxa-sacos e por um clima sufocante de rolo compressor.

 Puxando a fila, uma legião de áulicos e áulicas: “Lula sabe o que faz”, “deixem Lula resolver em paz”. O puxa-saquismo virou uma epidemia na esquerda, por vezes como um cacoete, por vezes como capa para a busca de um puxadinho na administração direta ou indireta, um contrato ou contratos, uma verba, um lugar ao sol -ou à sombra. 

A legião desfechou uma campanha agressiva por Zanin, que buscou silenciar e intimidar qualquer opinião contrária ao nome dele. Quem vive os fóruns da esquerda, dos partidos, dos movimentos, do Estado e tem um mínimo de honestidade intelectual pode atestar que o ambiente ficou irrespirável. Zanin teve uma campanha de relações públicas profissional para chegar ao cargo -mas isso não é novidade, outros ministros também tiveram. O fato novo foi a agressividade, o clima de intimidação. Quem tinha restrições a Zanin silenciou, com receio de se isolar do poder de Estado e de prováveis retaliações diante de uma indicação tida ao longo dos meses como quase certa.

Poucos reagiram. E foram vítimas da fúria dos líderes da campanha do advogado. Gregório Duvivier escreveu em março, num tuíte: “INACREDITÁVEL que Lula esteja pensando em botar mais um homem branco no STF. Pra piorar, um lobista rico vaselina. Não aprenderam nada com Dias Tóffoli.” 

Foi vítima de uma campanha de difamação e agressões. Hoje se vê o quanto ele tinha razão. 

Nos bastidores, alguns se moveram. Advogados do Grupo Prerrogativas chegaram a ponderar a Lula e a alguns ministros que a opção por Zanin não era o melhor caminho, mas publicamente defenderam a liberdade de decisão do presidente.

 

As restrições dos advogados - todas "em off"

 

Em abril, comecei a ouvir advogados e juristas sobre o nome de Zanin. Conversei com mais de dez. Todos extremamente receosos diante da virulência da campanha, muitos com um respeito quase reverencial a Lula e quase todos com receio de retaliações: nenhum deles concordou em falar “on the records”, 

O clima que testemunhei nas conversas era de enorme apreensão com o que se considerava um gesto temerário de Lula: a indicação de Zanin.

Basicamente, três ordens de motivos: a nomeação do advogado pessoal do presidente para o STF; a percepção generalizada de que Zanin era e é um conservador empedernido; a rala formação jurídica do então candidato.

Um advogado disse-me, sem meias palavras: “É um equívoco enorme nomear o advogado pessoal para o Supremo. Quando relato para colegas no exterior o que está acontecendo, ficam estarrecidos”. A indicação de Zanin rompe com uma norma ética não escrita mas que se impôs desde 1956 no país. Naquele ano, o presidente Juscelino Kubitschek convidou Sobral Pinto para uma vaga no STF. Era um gesto de gratidão, pois o jurista havia fundado e liderado a Liga de Defesa da Legalidade, que confrontara o veto de setores das Forças Armadas à candidatura JK.  Sobral recusou o convite, porque não queria que se pensasse que ele havia assumido a defesa de JK por interesse pessoal, de olho na cadeira suprema.

Outro asseverou-me: “as pessoas não conhecem Zanin, mas ele é um homem estruturalmente conservador, de direita e isso virá à tona no STF”. Procurei o mesmo advogado na sexta-feira e ele riu-se: “só não esperava que a revelação acontecesse tão cedo”.

Por fim, a questão da formação jurídica. É lugar comum que a indicação de um ministro ao Supremo não seja uma prova de títulos. Mas, como anotou uma advogada com quem conversei em abril, “o artigo 101 da  Constituição prevê que o indicado deve ter ‘notável saber jurídico’”. O conceito é amplo, talvez demais. Mas a advogada ponderou “espera-se que o nome submetido ao Senado tenha uma trajetória densa, uma biografia, ‘quilometragem jurídica’”

Não é o caso de Zanin.

O advogado de 47 anos chegou ao STF com um ralo currículo acadêmico, que não passa do bacharelado e uma especialização, sem doutorado ou mestrado, e sendo co-autor de apenas um livro, sobre lawfare. Outro advogado que escutei disse-me sobre o tema: “Ele é um excelente advogado, mas não tem leitura, não tem densidade, não tem trajetória de produção intelectual”.

Dois outros ministros do STF não têm o mestrado, a atual presidenta, Rosa Weber, e Dias Toffoli.

Apesar da ausência de trajetória acadêmica, Weber tem “quilometragem jurídica”. Ingressou na magistratura em 1976, como juíza do trabalho substituta, foi desembargadora e ministra do Tribunal Superior do Trabalho, antes de ser indicada por Dilma Rousseff ao STF em 2011. 

Toffoli tem uma trajetória curiosa. Nos anos 90, prestou concurso para juiz duas vezes -foi reprovado. Em 1995, tornou-se assessor jurídico da liderança do PT na Câmara dos Deputados, advogou em três campanhas de Lula e chegou a e subchefe da área de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, durante a gestão de José Dirceu. Em 2007, Lula nomeou-o advogado-geral da União, até indicá-lo ao STF, dois anos depois. A proximidade e seguidos serviços ao PT e ao próprio Lula talvez aproximem a escolha de Toffoli da de Zanin, pelo elemento “gratidão”. No caso de Toffoli, vimos no que deu. 

 

A descriminalização da maconha - um voto exemplar

 

O jornalista Felipe Mendes, do Brasil de Fato, entrevistou a renomada advogada Luciana Boiteux, professora de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vereadora no Rio de Janeiro pelo PSOL, sobre a votação a respeito da descriminalização do porte de pequenas quantidade de maconha. Ela atua no caso no STF na condição de amicus curiae (ou seja, "amiga da corte"), representando uma entidade que oferece subsídios à decisão dos juízes. 

Boiteux criticou o voto de Zanin abertamente: "Ele pode estar inclusive fortalecendo uma posição conservadora. Nós não estamos nem falando de legalização, estamos falando da mera descriminalização do usuário, que é um tema absolutamente constitucional. Não há nenhuma possibilidade de você imaginar que a descriminalização do usuário possa ter de alguma forma impacto negativo. Nós temos experiências internacionais citadas em todos os votos: Portugal descriminalizou o usuário desde 2001; Espanha, Alemanha, em vários estados dos Estados Unidos, também. Esses países já estão muito mais avançados que isso. Ele ignorou solenemente".

A qualidade do voto de Zanin foi alvo da crítica da jurista, em linha com as observações que colhi entre abril e maio “off the records”. Mestre e doutora em Direito Penal e Criminologia, ela pontuou:  "Ele trouxe um voto pobre, muito rápido, mostrou desconhecimento, e por outro lado trouxe quase fake news. Uma argumentação do ponto de vista sociológico, com afirmações sem qualquer base científica de que a descriminalização do usuário aumentaria o tráfico de drogas. Nesse contexto, ele se aproxima muito mais de posições de direita. Apesar do tema das drogas ser uma pauta polêmica, nós tivemos um amadurecimento da opinião pública  nos últimos anos".

 

O silêncio da esquerda ajudou?

 

Há uma onda em amplos setores da esquerda que condenam qualquer crítica ao governo Lula ou às ações, atitudes e posturas do presidente. O ambiente nas redes sociais progressistas é pesado, agressivo. A alegação é invariavelmente a mesma: qualquer crítica ajuda a oposição, Bolsonaro, a extrema direita. É preciso fidelidade irrestrita. 

O Caso Zanin é exemplar. O silêncio ajudou? A ausência de crítica contribuiu para a melhor solução no caso? 

Nessa altura do campeonato há poucos que defendem os votos de Zanin na esquerda - negacionistas argumentam que “a mídia conservadora” estaria distorcendo o caráter dos votos do ministro recém-chegado.  Ao lado deles está exatamente a extrema direita, os bolsonaristas, em festa por ter na Corte um ministro que apresentou votos tão reacionários que sequer foi acompanhado, pelo menos em um deles, por Nunes Marques (no caso da homofobia e transfobia).

Quanto a mim, uma autocrítica. Não publiquei a reportagem em abril/maio. Como não havia declarações “on the records” e o clima ao redor era de caça às bruxas aos que ousassem contestar a decisão de Lula, optei por engavetar o texto. Deveria ter seguido adiante e publicado.

No Fórum Café, que ancoro com grande alegria na pós-TV Fórum, abstive-me de comentar o assunto na maior parte do tempo. Quando o fiz, apresentando restrições leves, indiretas -o suficiente para choverem protestos agressivos. 

Devia ter escrito mais e falado mais.