Praça da Árvore... sim, existe em São Paulo, e parece que até tem árvore lá. Digo isso porque na praça da Bandeira não tem bandeira e na época da construção de uma estação do metrô na Praça da Árvore, se me lembro bem, acabaram com a vegetação, acho que depois replantaram.
Mas o que eu me lembro de uma árvore referência para a população da região de Pinheiros e Butantã, na zona oeste da capital, era uma paineira que existia logo depois da travessia da ponte sobre o rio Pinheiros, que serve de divisa entre o bairro com esse nome e o Butantã.
Marcava-se encontro ali, “ao da lado da árvore”, ou “em frente à paineira”. O ônibus que levava estudantes (e não estudantes também) gratuitamente para a Cidade Universitária saía dali de perto.
Desde os anos 1960 autoridades municipais, em vez de valorizar a paineira, viam nela um obstáculo. Ela ficava num cruzamento importante, com avenidas saindo por todos os lados. E vira-e-mexe falavam em derrubar a paineira-referência. A população protestava e não deixava. Por fim conseguiram, parece que falaram que um caminhão bateu nela. Pode até ser, mas não duvido que tenha sido um acidente planejado. Enfim, a árvore amada pelas pessoas deu lugar aos carros e ônibus.
Na avenida que sai dali em direção à Cidade Universitária abriram-se vários botecos com intenção de atrair os estudantes.
No começo, não tinham frequência praticamente nenhuma, até que em 1968 começamos a frequentar um deles, pequenininho, o Rei das Batidas. Éramos “a turma da Geografia”, mas incluía estudantes de História, Ciências Sociais, Física, Biologia... Aí, um dia levávamos uma namorada (ou namorado), um(a) amigo(a) que depois levava outro(a) e assim o bar foi ficando muito movimentado. Tão movimentado que às vezes o encontrávamos lotado, com todas as mesas ocupadas. Nessas ocasiões, o seu Manoel, que ficou muito grato a nós por levarmos tanta freguesia pra ele, nos chamava pra dentro do balcão. Tinha uma mesa só pra nós.
Depois, começou a ficar tão cheio que começamos a frequentar outros bares, como o Tropeirinho, que era ponto de parada para os ônibus que vinham da estação rodoviária para qualquer lugar do Sul, e por isso ficava aberto a noite inteira, uma beleza para nós, pois o Rei das Batidas fechava por volta de uma hora da manhã.
Aí começou o mesmo processo... Um leva mais alguém, esse alguém leva outro alguém, e logo já não tínhamos espaço ali. Decidimos: “Vamos pro Bar do João”. Era um bar minúsculo, com uma porta só, frequentado por carroceiros (havia muitos na região) e mecânicos, e sentava-se em caixotes e engradados pra beber, não tinha mesas e cadeiras. Achamos que lá não seríamos seguidos por um bando de gente. Ledo engano. Logo começou a dar tão certo que foi comprado por uma mulher esperta, que mudou o nome para “Bar da Tia Rosa”, pintou, pôs algumas mesas e cadeiras, e “oficializou” nossa sede ali. Como éramos um bando de esquerda, com predominância anárquica, declaramos que a região da Árvore era uma república independente, com capital no Bar da Tia Rosa.
Chamava-se Sacro Império Dissoluto, Etílico e Arbóreo. Modéstia à parte me proclamaram imperador, e algumas pessoas me chamavam de “alteza”.
Bom... Nem só os estudantes de esquerda descobriram o Bar da Tia Rosa: o polícia política também. Uma tarde, matei o serviço e fui beber com amigos lá, cheguei por volta das 3h da tarde e encontrei o bar vazio, com a Tia Rosa macambúzia, quase chorando. “O Dops baixou aqui e levou todo mundo”, disse.
Nós começamos a ser muito visados. Juntávamos a bagunça à militância de oposição à ditadura. Quando víamos que a barra estava ficando muito pesada, promovíamos lá uma festa chamada “culhãozada”. O Zé Cantagalo, estudante de História, trabalhava em algum órgão que fiscalizava matadouros e lhe davam colhões de boi. Nessas ocasiões, levava meio saco de colhões e cozinhávamos alegremente até de madrugada. Com a fama de afrodisíaco, os colhões atraíam muita gente. Enchia de estudantes bebendo sentados na sarjeta. Assim, pensávamos, a polícia não leva a gente a sério.
Eu me lembro que um dos frequentadores do Bar da Tia Rosa que foi preso, não lá, e morto sob tortura, o Alexandre Vanucchi Leme, estudante de Geologia, que eu conhecia pouco.
Ah, os carroceiros e mecânicos continuaram frequentando o bar, mas seus horários não esticavam até a madrugada, com exceção do Chico Carroceiro, que morava ali perto, num casebre rodeado de mato onde hoje há casarões burgueses. Sua égua pastava nos muitos terrenos baldios dali. E ele levava o filho, um menino de uns dez anos, apelidado Curumim, que um dia chegou chorando ao bar com uma notícia: roubaram a égua do Chico.
Ele ficou triste e demorou pra arrumar outro animal. Bebia pinga quase chorando, e quando pedia um sanduíche de mortadela, às vezes algum malvado lembrava a ele que diziam que mortadela era feita com carne de cavalos velhos, ele podia estar comendo (oralmente) a sua égua. Parava de comer na hora.
Lembro que abriram vários bares ali e a região toda ficou sendo uma espécie de referência da boemia paulistana. Um deles, o bar do Bilu, do amigo estudante e militante, que pulou do lado de fora do balcão pro lado de dentro. A gente dizia que frequentador de boteco não dá certo como dono, mas ele deu. Tinha um gerente ótimo. Outro foi o Bar d’Hugo. Este, mandamos uma “comitiva” avaliar e ela voltou dizendo que não gostou, era “muito burguês” do ponto de vista dos nossos amigos. E veio também o Café Paris, sofisticado.
Naquela época, paulistanos mais ricos que iam à França voltavam dizendo em tom de reclamação que “em Paris” podia-se ocupar uma mesa, pedir um café e ficar lendo um tempão, o que não existia aqui. Não havia “cafés”, em São Paulo. Eu pensava: “Gostam de café frio, né? Demoram uma hora pra beber”. Pois abriram um “Café” ao gosto dessa turma, com o nome atraente: “Paris”. Aí víamos gente totalmente diferente de nós por ali, entrando pomposamente no estabelecimento afrancesado. Num final de tarde, chamei uma amiga e fomos lá pra ver como era. Pegamos uma mesa perto da porta e ficamos observando os frequentadores.
Pedimos dois conhaques e bebericamos fofocando. Mostrei numa mesa próxima um carinha de oclinhos redondos, pose de intelectual, olhando pro vazio, diante de uma xícara de café pelo meio, esfriando. Brinquei com a minha amiga: “Aquele cara tá pensando que as pessoas estão pensando que ele é um alto intelectual”. Bebemos mais um conhaque e demos um pinote, quer dizer, saímos correndo sem pagar.
Um tempo depois, eu estava morando no interior e voltei à região ali, para encontrar amigos nos botecos. Já não existia mais a paineira gloriosa, e o Tropeirinho não funcionava mais. O ponto de ônibus mudou para ali perto, do outro lado da avenida.
Encontrei o Mendes, amigo velho, no Rei das Batidas, e ficamos bebendo. Por volta de 1h da manhã, veio o seu Manoel pedindo desculpa, que teria que fechar o bar. Nos deu tempo pra beber uma cachaça cada um e dividir uma cerveja. Saímos dali e entramos num outro bar, que estava fechando também. Uma cachaça cada um e uma cerveja dividida. E depois fomos a outro. Mesma coisa. Olhamos em volta, parecia não ter mais nenhum boteco aberto. Aí vimos uma luz forte saindo de uma porta larga a uns cem metros de distância. Corremos para lá, cambaleando. O Mendes já entrou gritando: “Duas cachaças e uma cerveja”.
Um cara que estava no guichê respondeu: “Ô, moço, aqui nóis vende é passagem de ônibus”.
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