REPRESENTATIVIDADE

Mais um dia 14. Este, por visibilidade lésbica - Por Monica Benicio

Em uma sociedade patriarcal e misógina como a nossa, a viúva povoa o imaginário social como uma mulher relegada à solidão e à amargura

Monica e Marielle.Créditos: Acervo Pessoal Monica Benicio
Escrito en OPINIÃO el

Segunda-feira, 14 de agosto, faz 5 anos e 5 meses do assassinato da minha mulher. Um tempo infinito na saudade. Tempo demais sem respostas sobre o verdadeiro culpado do crime que abalou a história recente da democracia. Violências demais acumuladas ao longo do tempo. Neste mês, que celebra o orgulho e a visibilidade lésbica, nos dias 19 e 29, respectivamente, eu quero falar sobre ser a viúva.

Em uma sociedade patriarcal e misógina como a nossa, a viúva povoa o imaginário social como uma mulher relegada à solidão e à amargura. Em famílias heterossexuais, essa figura se aproxima da virgem, destinada a honrar eternamente a memória do marido. É uma mulher ultrapassada pela vida, resignada e, muitas vezes, envelhecida. A amargura presente nessa ideia se reflete em expressões como “dor de viúva”, um sinônimo para “dor de cotovelo”. Cabe a ela apenas observar, não mais viver. No patriarcado, uma mulher que não está sob o controle de um homem está enterrada também. 

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Agora, imagina ser viúva de outra mulher? Uma ideia inconcebível. Foi essa a minha realidade aos 32 anos: em um relacionamento interracial, sem um documento para comprovar nossa união, lidando com a repercussão mundial de um crime político. Era demais para uma sociedade conservadora compreender, né?! Eu mesma demorei muito para me ver em algum lugar de afirmação, de legitimidade ou de reconhecimento respeitoso.

Até mesmo as fake news, difundidas quando o corpo de Marielle ainda estava no local do crime, reproduziam o patriarcado. Diziam que Marielle era mulher de bandido, de um homem. Porque, óbvio, um assassinato elaborado como aquele só poderia ser “justificado” se algum “grande homem” estivesse por trás da motivação.

Quando a imprensa e a sociedade começaram a correr atrás da família eu não estava incluída. Era “a família e a Monica” – e alguns ainda se referem assim até hoje – sem reconhecer a legitimidade da família que Marielle escolheu e lutou para construir em vida. A verdade é que nos primeiros meses eu não tinha como elaborar nada. A depressão, a exposição, a fúria –  única energia que me levava a pedir justiça em todos os cantos do mundo –  tomavam conta de tudo em mim. Por sorte, nessa época estive ao lado de uma rede de apoio afetiva que me acolheu, como outras mulheres lésbicas empáticas e solidárias à minha dor. Elas brigaram muito para me afirmar no lugar da viúva, para me fazer existir perante a sociedade. 

Demorei mais da metade da minha vida para ter coragem de me afirmar lésbica. Foram anos de luta para viver um amor que teve a lesbofobia como seu principal obstáculo. Foram 14 anos de idas e vindas com Marielle, e vivíamos, enfim, o momento mais feliz da nossa relação. Nós tínhamos um lar construído e uma festa de casamento programada para o dia 7 de setembro de 2019. Não bastasse a dor da maior violência que vivi na vida – com o assassinato de Marielle, com a perda do meu grande amor –, ainda precisei, de uma hora para outra, provar para o mundo, mais uma vez, que nossa relação existia, e que era legítima.

Até que se tornou impossível negar a minha existência na vida dela. Vieram, então, as acusações de oportunismo, que circulavam dos ambientes mais próximos aos tribunais da internet. Precisavam deslegitimar o nosso amor me acusando de ter algum propósito oculto. Não podia ser simplesmente um amor entre duas mulheres. E eu só pensava: oportunidade de quê? De viver o maior pesadelo da minha vida? Era impossível não me questionar como seria se eu fosse um homem. O que diriam? Respeitariam mais o meu luto e a minha dor?

A imagem da viúva oportunista é um clássico. Em quantas novelas a gente não viu a mulher planejar a morte do marido para ficar com a herança? Somado a isso, relacionamentos lésbicos são sempre tratados como promiscuidade, uma fase na vida de uma mulher que não encontrou o homem certo, curiosidade passageira nada perto de ser considerado uma família de verdade. Quando voltei a me relacionar com outras mulheres, virei a personagem perfeita – totalmente oportunista. Quando voltei a me relacionar com outras mulheres, eu podia ouvir as celebrações daqueles que pensavam “Eu sabia! Viu? Ela já superou. Não era amor de verdade”. Com medo, eu evitei relações verdadeiras com outras mulheres. Por um breve momento, eu também acreditei que deveria ser condenada à solidão eterna que o patriarcado oferece como sentença para as mulheres viúvas. 

A verdade é que em uma sociedade lesbofóbica, não existe espaço para o amor entre mulheres, tampouco haveria de ter espaço para o luto dessas mulheres. Nossas famílias não são consideradas, nossas dores não têm tanto valor, nossas vidas são menos importantes e nossos afetos devem ficar na invisibilidade.

Desse modo, além de todas as lutas nas quais me somo como defensora de direitos humanos, como militante feminista, sobretudo não posso nunca deixar de afirmar a luta LGBTQIAP+. 

Por isso, afirmo sempre que possível no plenário da Câmara Municipal do Rio, que sou uma vereadora lésbica, sapatão, a única naquela casa. Por isso, o primeiro Projeto de Lei que fiz questão de apresentar como vereadora, foi um projeto construído por várias mulheres lésbicas junto com o mandato da Marielle, e institui o dia 29 de Agosto como o dia da visibilidade lésbica no calendário da cidade. Esse foi o único projeto que Marielle chorou por ter perdido, e que só virou lei depois da segunda tentativa que fiz de representá-lo nesta legislatura. Este ano, pela primeira vez, o dia da visibilidade lésbica será celebrado no calendário oficial do Rio. Por conta de toda luta para aprová-lo, na equipe da minha Mandata já é tradição que Agosto é um mês que não nos dá descanso. Já é planejado e articulado pelo menos 10 dias consecutivos de atividades lésbicas, do orgulho à visibilidade, que é para ocupar o debate público com as nossas demandas, que são muitas e precisam ser reconhecidas por toda a sociedade. 

Chega de armários e conversa entre amigas. Chega do discurso que nossos afetos devem estar restritos a quatro paredes. Queremos políticas públicas feitas para nós e pensadas por nós. É responsabilidade de todos aqueles que querem uma sociedade mais justa, que sejamos ouvidas como parte fundamental da luta. É dever de todas as pessoas que defendem a democracia lutar para que mulheres lésbicas estejam vivas e sejam visíveis. 

Se há alguma oportunidade nisso, apenas essa me serve: por Marielle, por mim e por todas, que estejamos vivas, visíveis e reconhecidas!

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.