OPINIÃO

Josefa – Por Luis Cosme Pinto

Amor e mistério na tortuosa história de uma quarentona

Créditos: Divulgação
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Quarenta anos de vida, quarenta anos no mesmo endereço, a rua das Palmeiras, na Vila Buarque. Josefa, nasceu numa terça-feira de outono, era 15 de março de 1983. Está lá na certidão de nascimento.

Em quatro décadas, Josefa testemunhou o esplendor da rádio mais ouvida do Brasil ali pertinho, o sucesso do hotel estrelado na calçada em frente, o abandono da praça Marechal Deodoro.

Vizinhos anônimos, moradores comuns, esses então são de perder a conta. Chegaram e saíram em mudanças e mais mudanças. O eterno vai e vem de caminhões-baú e caminhonetes carregadas de móveis e sonhos de vida.

Hoje, Josefa mora entre uma agência bancária e um estacionamento. Na calçada de lá, o varejo miúdo de açougue, farmácia, colchões em liquidação. É, a rua das Palmeiras nem cochilou e já está acordada de novo.

É gente que não acaba. Gente com cachorro, ciclista apressado na calçada; crianças atrasadas pra escola, moradores de rua famintos.

Josefa não se abala. A postura é a mesma, em silêncio, sempre de braços abertos e as raízes cada vez mais profundas.

Raízes? Sim, raízes. Josefa é uma árvore.

Mangueira de copa robusta, folha verde musgo. Dá sombra fresca a quem entra no banco. Tanto faz se é um desempregado em busca do Bolsa Família ou um investidor endinheirado. Também é guarda-chuva ou guarda-sol de quem espera o ônibus e proteção para quem chega ou sai do estacionamento.

A gente não se dá conta, mas Josefa ajuda a limpar o ar sujo do centro paulistano, assim como as vizinhas. Uma figueira de caule retorcido; a Tipuana, elegante numa curva discreta; e mais pra frente um esguio pau-mulato.

O manobrista Cícero tem um olho nas mangas já crescidas, ainda que verdes, e outro no entra e sai dos carros. Numa pausa me conta.

- É Josefa em homenagem à mãe.

- Como assim?

- Há muito tempo, uma mulher chamada Josefa morou num apartamento aqui da rua das Palmeiras.

- Como virou mãe de árvore?

- Dona Josefa trouxe a muda, plantou a mangueira e mandou fazer o canteiro em volta pra proteger.

 - Ela mesmo cuidava?

- Sim e depois contratou um jardineiro. O homem limpava o terreno do cercadinho, adubava e até podou um galho ou outro. Depois, a árvore seguiu solitária, como filha já crescida e levou o nome da mãe.

Uma buzina interrompe Cícero.

Encaro Josefa. A certidão de nascimento, que citei lá em cima, é uma placa de fórmica escrita em fita isolante preta e fixada com uma corrente ao tronco: EU SOU JOSEFA, PLANTADA EM 15/03/1983.

A placa tem capricho e carinho de mãe, mas nem o bem informado Cícero sabe dizer onde anda a Josefa de carne osso. Mudou, casou, partiu...mistério

Embaixo da sombra, observo o dia comum, de trabalho e pressa. Alguns, poucos é verdade,  tiram os olhos do celular pra admirar Josefa e suas pencas de manga.

Seria Palmer, macia e bem amarela? Tommy, perfumada e carnuda? Na minha infância as mais conhecidas eram a Coração de Boi, grande como o nome sugere, e a Carlotinha, miúda e fibrosa, de chupar até o caroço.  

O professor Takanoli Tokunaga, o homem que conversa com a natureza, resolve o mistério. Apenas olhando a foto que mandei, descarta Tommy e Palmer. Pelo tamanho e formato é Espada, aquela doce, que gruda no dente e é ótima pra suco, garante. Ele me esclarece um pouco mais sobre a árvore que num dia distante chegou da Ásia, invadiu quintais, bosques e até calçadas desse lado de cá do oceano Atlântico.

“Quanto maior a altura, maior o tombo.” Tokunaga repete o ditado pra lembrar que na cidade mangueira boa é mangueira baixa. Se muito alta, a fruta despenca lá de cima, machuca gente e carros.

Josefa tem tronco grosso e tortuoso, a casca espessa e dura. É um presente pra essa rua com nome de árvore e tão pouco verde.

Quem diria, a mangueira da Palmeiras tem nome, tem história, tem fã clube. Sabiás, sanhaços, rolinhas já afiam o bico e cantam em homenagem ao banquete de daqui a pouco.

Suculenta e romântica como naquela música em que Alceu Valença canta pra uma deslumbrante morena tropicana: “da manga rosa quero o gosto e o sumo”.

Ele e todos nós.

*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas, Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da editora Kotter.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.