Recebi a notícia da morte de Wladimir Pomar em um dia em que estava adoentado e fora de São Paulo, e não pude me despedir. Uma tristeza. Estas linhas são uma forma de dizer adeus.
A impressão mais forte que Wladimir me deixou era a de um homem que sorria com os olhos, mas era muito sério. Altivo e discreto. Em todas as oportunidades em que estivemos juntos, nunca falou de si mesmo. Mas Wladimir tinha muitas histórias exemplares e educativas para nos contar.
O nome da vida foi o título de sua imperdível autobiografia. Um livro em que a paixão revolucionária transborda por todas as linhas. A vivência de muitas derrotas não o deixou amargo, mas reflexivo. O livro relata uma parte importante da saga da esquerda brasileira antes e durante a ditadura. Mas, também, sobre o sentido de uma luta que permanece a causa mais elevada do nosso tempo. Uma luta à qual se dedicou de forma abnegada e incansável.
Conheci Wladimir em 1987. Ambos éramos membros do Diretório Nacional do PT. Mas sabia quem era a família Pomar desde 1976, quando ainda estava em Lisboa, e compareci a um comício de denúncia do massacre da Lapa, convocado pela UDP (União Democrática Popular), a organização legal animada pelo PCP (R), em que Diógenes Arruda, um dos líderes do PCdoB, então exilado em Portugal cumpriu um papel destacado. Assim aprendi o nome de Pedro Pomar, ao lado de Ângelo Arroyo e João Batista Franco Drummond, e nunca esqueci, porque uma esquerda que não honra seus mártires não merece existir.
Embora já fosse um militante trotskista – havia me integrado à Quarta Internacional uns três anos antes - tinha uma relação de muito respeito pela UDP porque meu maior amigo de infância, desde os nove anos, era o filho mais velho de Chico Martins, a liderança mais importante da ruptura do PCP que esteve na raiz da corrente que esteve na origem da UDP. O massacre da Lapa teve um profundo impacto sobre mim. Só vim para o Brasil em agosto de 1978, quando caiu toda a direção da Convergência. Mas foi em 1976 que compreendi que meu futuro era voltar ao Brasil para participar da luta contra a ditadura.
Wladimir era vinte anos mais velho que eu. Mas os anos não são todos iguais, e a experiência dele era imponente. Sabia que era herdeiro de uma história que merecia meu máximo respeito. Chegar à vida adulta no início dos anos cinquenta foi muito diferente de o fazer no começo dos anos setenta.
Essa diferença de duas décadas foi trágica no Brasil, porque correspondeu ao período em que era iminente, e depois se precipitou o golpe militar de 1964. Por ter sido poupado, por ser muito jovem, e porque minha família teve a lucidez de sair do Brasil em 1966, minha admiração pelos que lutaram nos anos de “chumbo” sempre foi imensa. Por isso, que é muito, e porque sabia, também, que, cada um à sua maneira, compartilhávamos a defesa da tradição da revolução de outubro, estava sempre atento às suas intervenções na direção do PT. Queria aprender e aprendia.
Wladimir se educou na “escola” comunista da III Internacional. Uniu seu destino à luta dos trabalhadores. Viveu a proletarização na experiência da fábrica no Rio de Janeiro. Construiu um trabalho de base na implantação entre os trabalhadores rurais no Ceará. Participou de uma luta política muito dura defendendo a necessidade de uma avaliação crítica sobre a experiência do Araguaia. Sobreviveu ao drama do massacre da Lapa, em que perdeu seu pai. E, já nos anos oitenta, entregou suas melhores forças, em São Paulo, ao projeto de construção do PT na hora decisiva da fase final da luta contra a ditadura.
Wladimir foi, também, o organizador da campanha presidencial de Lula em 1989. Foi o momento chave da projeção de Lula como a maior liderança popular do país. As digitais de Wladimir estavam presentes nas difíceis decisões táticas que garantiram a presença naquele segundo turno histórico contra Fernando Collor.
Nunca vou esquecer uma reunião do DN do PT, no Pio XI na Lapa em São Paulo, depois da derrota eleitoral de 1989. Plínio de Arruda Sampaio, um dos veteranos da geração que tinha vindo desde antes do golpe de 1964, muito mais velho do que a imensa maioria dos membros do Diretório, portanto, com muita autoridade, tomou a palavra e defendeu que, era melhor mesmo termos perdido as eleições, porque a esquerda não estava madura o bastante para governar. A polêmica foi intensa e apaixonada.
Eu estava perplexo, mas compreendi que Plínio estava preocupado com o perigo da desmoralização que sempre é muito grande depois de derrotas sérias. Afinal, a situação brasileira e argentina tinha evoluído, nos anos oitenta, numa dinâmica oposta à da situação mundial, quando a ofensiva neoliberal, nos países centrais, se impunha como a orientação dominante do capitalismo, ameaçando a destruição das conquistas sociais do pós-guerra. A classe trabalhadora brasileira era que tinha realizado mais greves, ao lado da sul-africana, em comparação internacional. Mas Wladimir era surpreendente e usou um argumento poderoso. Disse algo muito importante. Nossa obrigação era lutar para vencer. Não tínhamos outra escolha. Fiquei pensando: leninismo na veia. Dar um empurrão na história.
Encontrei, pessoalmente, Wladimir, muitos anos depois, em um Fórum Social Mundial em Porto Alegre, no início do novo século, quando estivemos em uma mesa, organizada pelo MST, ao lado de François Chesnais, um velho economista de educação trotskista, e depois fomos almoçar juntos com Stedile em um quilo. Ele brincou comigo dizendo, muito afável, que tinha sido uma boa discussão, embora cercado por dois troskos empolgados, felizmente, lúcidos. Eu adorei.
A última vez que eu o vi foi na Escola de Sociologia e Política em São Paulo em 2019. Ambos colaborávamos com um curso de formação da ELAHP (Escola Latino-Americana de História e Política). A minha sessão terminava e a dele ia começar. Wladimir ia ensinar sobre o Capital de Marx. Eu tinha que sair para participar de um Encontro da campanha Lula Livre no sindicato dos metroviários. Só nos cumprimentamos. Subi na moto e fui para a Zona Leste pensando que não havia muitos marxistas no mundo que, com mais de oitenta anos, mantinham o mesmo engajamento militante. E uma humildade emocionante.
Adeus, meu bom camarada.
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