EXTREMA DIREITA

O caso Vini Jr: o mercado nunca irá nos livrar do racismo – Por Raphael Fagundes

A luta é para que o racismo fique perdido em algum lugar do passado como as diversas atitudes comuns de outrora que hoje consideramos repugnantes

Vini Jr é alvo de manifestações racistas na Espanha.Créditos: Reprodução
Escrito en OPINIÃO el

Para Norbert Elias, um dos sociólogos alemães mais conceituados do século XX, o esporte é fruto do processo civilizador, das elites que passaram a identificar como bárbaro as guerras e os duelos entre cavalheiros. Mas observa que esse controle da violência, da brutalidade, não é uma característica eterna da raça e da etnia das nações civilizadas, mas o resultado de um desenvolvimento social específico que culminou no “controle social diferenciado e estável dos meios de violência” e que, portanto, “este tipo de desenvolvimento social podia ser invertido”.[1]

Para o autor essa inversão ocorreu nas atrocidades cometidas pelos nazistas. Contudo, precisamos ressaltar que o desporto ganhou espaço entre as nações civilizadas justamente no período em que estas expressavam um imenso cultivo do ódio, como destaca o historiador inglês Peter Gay. Os finais do século XIX e o início do XX foi o período da ascensão racista que desembocou no nazismo do período entre guerras.

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Aqui no Brasil, por exemplo, Lima Barreto criticava a distinção de raça que vedava aos negros a participação nos grandes clubes, usando um termo comum do imperialismo inglês: “É o fardo do homem branco: surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim: não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam”.[2]

Na década de 1930, a presença de Leônidas da Silva no selecionado brasileiro acarretou um certo rancor da elite branca. O jogador foi acusado de roubar uma joia de uma dama, “que alega ter sido a mesma achada por Leônidas e não restituída”, dizia a imprensa da época. O historiador Leandro Pereira destaca: “Lançado sobre ele o preconceito que denunciara, que fazia de negros como ele os suspeitos potenciais de todo o tipo de crime”.[3]

A gota d'água das demonstrações de racismo ocorreu em um jogo entre Bonsucesso e América, quando o jogador, sendo vaiado pela torcida que o chamava de “moleque, preto sem vergonha, negro sujo”, irritou-se e acabou por “responder a torcida mostrando-lhe seus órgãos genitais”.[4]

O curioso é que Leônidas mostrou seu futebol em campo na Copa da França de 1938 e recebeu o nome de “Diamante Negro” forçando a imprensa parisiense a exaltá-lo: “Cabelos esticados, pele escura como grão de café torrado, pequeno corpo. Mas sua vivacidade é verdadeiramente desconcertante, sua velocidade insuperável. (...) Quando Leônidas faz um gol, pensa-se estar  sonhando, esfregam-se os olhos”.[5]

O antropólogo Roberto Da Matta acredita que abrasileiramos o futebol, pois introduzimos a mistura em um selecionado para disputar a Copa. “O Pelé falou recentemente que na Copa de 1958 ele estranhou que só o nosso time tivesse negro. Hoje não é assim, se você pegar os selecionados, vê que está tudo misturado. Misturado por causa disso: nós de certo modo abrasileiramos o futebol mundial”, disse em entrevista à Revista de História da Biblioteca Nacional.[6]

Mas essa mistura não é tão harmoniosa assim, como parece acreditar o antropólogo. O pensamento retrógrado e conservador ainda está atrofiado em eras antigas, impedindo a explosão do novo. E a manifestação do que impulsionou as atrocidades nazistas ainda estão presentes no futebol.

Esse sentimento de superioridade parece estar representado nos torcedores do Valencia, os ultras que exibem fotografias com bandeiras nazistas. Aliás, o nazismo está presente nas torcidas de futebol europeias há anos, como no caso do Combate 18, movimento neonazista inglês, que recrutava skinheads e hooligans para as suas fileiras[7], e na Itália, onde os torcedores ultras despejam o seu ódio contra os jogadores imigrantes.

No passado, o próprio Real Madrid foi usado pelo ditador fascista Franco como propaganda diplomática. Santiago Bernabéu, que emprestará o seu nome ao estádio do time da capital espanhola, pertencia às tropas franquistas em 1939.

O caso Vinícius Jr é uma tragédia, contudo parte de uma filosofia proveniente da própria extrema direita que persiste. Aliás, esse é um dos aspectos pelo qual devemos diferenciar a extrema direita da extrema esquerda, já que a imprensa costuma colocar tudo no mesmo saco. A extrema esquerda jamais será racista. Talvez por isso, Leônidas da Silva, em sua época, declarou voto em Yedo Fiúza, candidato do PCB, afirmando "Voto Fiúza porque sou um homem do povo".[8]

De acordo com o historiador português Francisco Bethencourt, "os preconceitos quanto à ascendência étnica combinados com ações discriminatórias são assim associados a projetos políticos, mesmo que nem sempre sejam integrados e institucionalizados pelo Estado".[9] E esse, no mundo atual, é um projeto político da extrema direita. Enquanto a direita liberal - e até mesmo alguns membros da esquerda - clamam aos empresários que patrocinam o campeonato espanhol um alinhamento às exigências da agenda ESG - como se o mercado fosse de fato resolver o problema do racismo - a extrema esquerda talvez seja o único espectro político que busca soluções humanizadas, fraternais, para a questão do racismo.

É a mentalidade que deve mudar. Não será o medo de associar a marca de uma empresa ao racismo que irá eliminar este último do planeta. Isso não impedirá que o racismo ainda persista nos projetos políticos obscuros que habitam o submundo neonazista. O mercado não tem solução para o racismo estrutural.

É uma proposta punitiva para os mercados. Precisamos de uma pedagogia antirracista. Não é uma questão de competição (a empresa que seguir as regras vai vender mais). A competição nunca promoveu a paz, pelo contrário. Os seres humanos evoluíram por meio da solidariedade, da "ajuda mútua", como nos mostra um dos grandes baluartes da extrema esquerda, Piotr Kropotkin, ainda no século XIX: “Considerando os incontáveis fatos que podem ser apresentados para corroborar essa visão (darwinismo social), podemos dizer com segurança que tanto a ajuda mútua quanto a luta de todos contra todos são uma lei da vida animal; mas, enquanto fator de evolução, a primeira tem provavelmente uma importância muito maior, na medida em que favorece o desenvolvimento dos hábitos e características que asseguram a manutenção e a evolução da espécie, além de maior bem-estar e melhor qualidade de vida para o indivíduo com o menor dispêndio de energia”.[10]

Talvez assim, pela consciência de que o desenvolvimento humano e a sobrevivência da nossa espécie dependem da ajuda mútua, é que a inversão, de que fala Norbert Elias, de fato não ocorra. E a violência, que é o racismo, fique perdida em algum lugar do passado como as diversas atitudes comuns de outrora que hoje consideramos repugnantes.

 

[1]ELIAS, N. Em busca da excitação.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. P. 213.

[2] PEREIRA, Leonardo Affonso. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 225.

[3] Id. P. 321

[4] Id. P. 322.

[5] FRANZINI, Fábio. Quando a pátria calçou chuteiras. In: RHBN, ano 1, n. 7, jan. 2006. p. 23.

[6]  In: RHBN, ano 1, n. 7, jan. 2006. p. 47.

[7] CLARKE-GOODRICK, Nicolas. Sol negro. São Paulo: Madras, 2004. P.62.

[8] Apud FRANCO Jr. Hilário. A dança dos deuses. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 87.

[9] BETHENCOURT, F. Racismos. São Paulo: Cia das letras, 2018, p. 28.

[10] KROPOTIKIN, P. Ajuda Mútua: um fator de evolução. São Sebastião: A Senhora Editora, 2009, p. 22. Disponível em: https://www.anarquista.net/ajuda-mutua-um-fator-de-evolucao-de-piotr-kropotkin-livro/. Acesso em: 26 de jul. 2019.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.