IDENTIDADES

Por que eu também não posso ser Barbie? - por Filippo Pitanga

Com o hype do novo filme live action da famosa personagem clássica “Barbie”, dirigido pela cineasta multi indicada ao Oscar Greta Gerwig, novos debates prometem ajudar a desconstruir velhas questões de gênero e sexualidade

Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

"Eu sou como uma Barbie vivendo no mundo da Barbie
A vida de plástico é fantástica
Você pode escovar meus cabelos, me despir em qualquer lugar
Use a imaginação, a vida é sua criação"

("Barbie Girl", Aqua, 1997)

Esses foram os versos de uma canção bastante famosa na década de 90, que parodiava a marca de brinquedo "Barbie" e evocava uma expectativa de comportamento social representada pela boneca. Em parte, até certo ponto, a indústria alimentou um ar decerto superficial, como se fosse apenas algo para crianças e que devesse ser maleável de se manipular e aplicável a todos os gostos... apesar de sabermos bem que não era bem assim.

Agora, com o interesse crescente no filme de 2023 que está adaptando o universo "Barbie" pela primeira vez em live action para os cinemas, com direção de alguém bastante gabaritada como Grate Gerwig (de "Lady Bird" e "Adoráveis Mulheres"), retomamos o debate acerca desta figura mítica e o quanto exerceu influência outrora (e, talvez, até agora) sobre inúmeras gerações e como elas se veem refletidas. 

É tamanho o alcance disso que até o lançamento do trailer (veja aqui) e cartazes do filme viralizou como filtro de redes sociais para que qualquer pessoa pudesse tirar uma foto como se fosse a "Barbie" ou o "Ken" (confira aqui). Afinal, esta foi uma campanha de marketing bastante esperta em projetar o espelhamento no espectador para que ele visse quem quisesse nos personagens principais. E foi este lançamento que já gerou balbúrdia nas redes sociais a ponto de mostrar o quão influente ainda é este símbolo, e o quanto devemos refletir sobre ele -- de tal maneira que este que vos escreve foi hostilizado nas redes apenas porque fez uma foto personalizada com o pôster da "Barbie" e seguidores intolerantes decidiram atacar o post em questão. 

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Em breve retomaremos o ponto acima, que envolve ódio nas redes e intolerância à diversidade... Mas, primeiro, precisamos voltar um pouco atrás e tentar entender o paradigma de onde parte esta repercussão toda. Já foi a época em que "Barbie" era sinônimo de mulher branca, loira, de olhos claros e bem-sucedida como "modelo" ou "mãe de família", pois estes eram o padrão vendido como um ideal de imaginário da sociedade e, quem não se encaixasse, sofria por rejeição ou incompatibilidade. Notando isto, os fabricantes foram aos poucos incorporando certa pluralidade na boneca, fazendo versões de todas as variedades raciais, de idade, de profissão ou mesmo refletindo a sociedade como um todo. Fossem personagens de cinema ou pessoas deficientes, todas poderiam ter sua adaptação de brinquedo.

A "Barbie" original ainda exercia muita influência, claro. Foi com essa origem que muita gente descobriu sua própria identidade ou até mesmo sua sexualidade. Quem não teve uma prima invejada por toda a escola por ter o castelo de fantasia completo com a família da boneca; ou quem não teve um colega de escola que botava fogo na coleção da irmãzinha (o que todos estranhavam, mas naquela época normalizavam). Existiam os meninos que faziam bullying nos outros, dizendo saber mais do que qualquer um sobre a vida sexual dos pais, e performavam isso com a boneca. E até mesmo aqueles de nós que simplesmente gostavam de brincar com ela, de penteá-la e vestí-la com todo o guarda-roupa disponível, ou até casá-la com algum super-herói ou vilão da coleção heteronormativa...

Algumas meninas descobriam mais sobre si mesmas olhando no espelho da boneca e das relações inventadas com a família de brinquedo -- às vezes transferências das adversidades que passavam em casa. Assim como algum parente podia adoecer de câncer, a boneca também adoecia e alguns até raspavam o cabelo da Barbie para lhe dar suporte quando nada mais parecia fazer sentido. Se você fosse uma menina, a família considerava normal tudo isso, mesmo quando o próprio padrão da Barbie ainda não se encaixava com seus parentes, nem com você, pois demorou a existir versão oriental ou negra, ou mesmo casada com outra pessoa que não fosse o Ken -- quem sabe ela se interessasse por outra Barbie...

Contudo, se você fosse um menino, o que mais ouvia era que esse comportamento era inapropriado. E não estamos falando aqui de questões de sexualidade, necessariamente, pois nada impediria um menino com orientação heterossexual de gostar de brincar de bonecas. Mesmo assim, muitos responsáveis por essas crianças, mais os pais do que as mães (ainda que haja exceções), chegavam a levá-las ao médico para tratar aquilo como se fosse patológico ou desviante. "Barbie" era um estilo, sim, e era tratado como elitista, normativo e altamente excludente.

Foi só com os tempos mais recentes que a propaganda mudou, e, no lugar da boneca submissa às vontades de seus possuidores, como a música do grupo Aqua preconizava, passou a estampar slogans empoderadores do tipo: "Seja quem você quiser". Mesmo sendo um brinquedo para crianças, passou a estampar inúmeras profissões, como Barbie dentista, advogada, engenheira, médica, atleta e tantas outras, podendo vir em todos os tipos, raças e idades. 

E isso não impactou somente as mulheres, como também aos homens. Existe toda uma geração LGBTQIAP+ que sente nostalgia em relação à boneca porque foi a primeira vez em que pôde brincar de refletir outras formas de amar ou se representar que não pela norma imposta. Poder vestir o Ken com as roupas da Barbie ou vice e versa, e brincar de casinha somente com as bonecas foram primeiros passos muito importantes para toda uma geração. 

Aliás, não é de agora que o arquétipo vem sendo quebrado, vide o hoje cult "Toy Story 3", da Disney/Pixar, no qual o Ken assume sua sexualidade homoafetiva, ou mesmo em "Mulher-Maravilha" em que se assume que as amazonas tinham relações entre elas mesmas, e versões da Barbie para as personagens do filme estariam entre as mais vendidas da época. E até o trailer do novo filme da boneca faz alusão ao relacionamento afetivo entre os vários bonecos Ken, num misto de competitividade e homoerotismo velado. Sem falar na eterna analogia com a ausência de órgãos biológicos desses brinquedos que, na teoria, sempre aludiu a uma relação assexual. 

Engana-se quem estiver lendo o presente texto e se considerar dentro de um espectro do padrão heterotop que você também não tenha recebido a influência deste grande ícone, pois, para o bem ou para o mal, muita gente espelhou um padrão outrora inatingível e que contaminou muitas relações a partir daí. Seja ma expectativa injusta e surreal de companheiras que deveriam parecer e se comportar como Barbies, ou mulheres que esperavam "príncipes encantados" como o Ken. Nenhuma dessas metas era saudável para ninguém, e deveria apenas ser uma bolha controlada de infância onde pudessem brincar como crianças.

Talvez sejam os inconformados com a atual pluralidade representativa da famosa personagem que estejam acusando e apontando dedos para o tom “politicamente correto” desta inclusão. Entretanto, na verdade, a revolta de algumas pessoas se deve mais à disseminação de ódio na internet, de avatares sem nome ou sem identidade, que se escondem atrás de alcunhas e fotos falsas, para não mostrar o quão vazias estariam as suas vidas, e por isso tentam descontar nos outros. Essas pessoas não querem a chance de se ver refletidas numa representação plural porque apenas como excluídas elas podem se sentir especiais.

E faz algum tempo que este que vos escreve não recebe nenhum ataque ou mensagens com intenção tóxica de leitores, até porque palavras dirigidas com raiva por seguidores nas redes só ofendem de acordo com a intenção. A intenção deste detrator mais recente pode ter sido talvez de ofender, mas com certeza não conseguiu alcançar seu objetivo. A melhor coisa a se fazer hoje em dia é bloquear, de plano, aqueles com quem não se tem possibilidade de diálogo ou que propagam intenção de ódio ou de discriminação, como a pessoa que perseguiu os cartazes da “Barbie” na rede (e cujo identificador do perfil da pessoa, aliás, possuía até emojis de armas e morte como "faca" e "tumbas" ao lado do nome, mas que não devemos expor ou dar mais publicidade aqui para quem só quer chamar atenção, como "incel" ou "red pill" desse tipo).

Diminuir a identidade de quem gosta de “Barbie” apenas por não se identificar é muito triste. Não obstante quem goste de “Barbie” seja mulher ou homem, ou esteja ou não casado numa relação heterossexual, afinal, vivemos uma época de sexualidade livre e aberta a emoções ao invés de gêneros. Mas até a ofensa equivocada aqui por parte do sujeito, inclusive, parece confundir gênero com sexualidade, já que a imagem que parece tê-lo ofendido foi aquela em que qualquer um pode se identificar com a “Barbie”, e não com o Ken, por proximidade a um arquétipo de alguém que cuida de si sem deixar de ter personalidade, inteligência e carreira (como o filme parece querer desconstruir a partir do estereótipo clichê mais raso que a personagem costumava ser encaixada antigamente). Até nisto a pessoa se equivoca retumbantemente.

E é curioso e bastante significativo que de todo o conteúdo Queer em que estamos imersos hoje em dia, na tentativa de desconstrução desse universo binário e conservador que temos ainda hoje, justamente o filme "Barbie" prove sua relevância atualíssima e tenha ofendido tanto este indivíduo a ponto de ser agressivo só por causa de um símbolo. Ainda mais numa semana em que tivemos mais um ataque a escolas no Brasil. Essas pessoas costumam ter ódio das diferenças, da pluralidade, e costumam atacar mulheres e crianças como se atacassem as novas gerações ou tentassem tolher o futuro a que temos direito com mais consciência, tolerância e amor.

Portanto, se você outrora jamais se encontrou na boneca e, talvez, só agora consiga sequer encontrar uma versão para sua filha ou filho que reflita de fato a sua família como ela é... Ou se você cresceu ouvindo de seus pais que estava velha ou velho demais para brincar de boneca, ou que apenas meninas "direitas" podiam ser Barbie, ou que meninos não poderiam brincar de boneca, libere sua Barbie interior. Admita que você gosta de pentear os cabelos e fazer tranças e usar todos os produtos de marca, sim, pois a dermocosmética está em alta para mulheres e para homens, e que experimentar toda a loja de roupa pra fazer desfile fashion é divertido pra qualquer um. Entenda que se essas bonecas e bonecos existem pra brincar, nossas crianças internas ainda estão lá dentro nos dizendo que podemos sim ser quem nós quisermos a qualquer tempo. E, seja homem ou mulher, normativo ou disruptivo, libere a Barbie dentro de você e deixe de ser careta. Ser Barbie voltou à moda. 

*Filippo Pitanga é crítico de cinema

** Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum