Os liberais não criticam o governo, eles criticam o Estado. Em conluio com o mercado financeiro, defendem a separação da economia do governo. Assim foi com Guedes nos primeiros anos do governo Bolsonaro e agora com Haddad.
Outro ponto é o fato de que não defendem o debate popular em relação a medidas econômicas, como foi no caso do novo arcabouço fiscal e da reforma do ensino médio.
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Sobre o ensino médio, a posição predominante é de que deveria ser implementado do jeito que está e observar o que "dá certo" e o que “não dá”. A participação popular é chamada de "grupo de esquerda", "problema político" etc.
Usa-se o discurso que entende a participação popular como uma ação política em assuntos que deveriam ser apenas técnicos. Um pensamento muito longe da concepção de educação democrática defendida por Paulo Freire.
A questão da independência do Banco Central foi o centro das contendas nos veículos de comunicação reacionários. Querem fazer da instituição uma espécie de quarto poder. E é lógico que em uma disputa entre o governo e o Banco Central, a imprensa que é contra o Estado, vai defender o Banco Central.
Se esse grupo da elite é contrário ao Estado podemos concluir que é também antidemocrático. Democracia não é ausência de Estado. Democracia é a participação popular nas decisões do Estado.
Em meio a essa bipolaridade imposta pela lógica ocidental, se esses liberais não são democráticos, são defensores da ditadura. Mas que tipo de ditadura? A ditadura do mercado. Ou como prefere Mark Fisher, trata-se de um "stalinismo de mercado".
Isso nos faz pensar na confusão que o mercado cria na educação para o próprio professor: "A própria tentativa de tratar a educação como um sistema orientado para o mercado sustenta-se em uma analogia confusa ainda pouco desenvolvida: seriam alunos consumidores de um serviço ou seu próprio produto?".[1]
Se partirmos da teoria do valor de Marx entenderemos que "o que determina a grandeza do valor (...) é a quantidade de trabalho socialmente necessária ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor-de-uso".[2] Mas esse produto deve satisfazer necessidades sociais, não privadas. "Quem, com seu produto, satisfaz a própria necessidade gera valor-de-uso, mas não mercadoria. Para criar mercadoria, é mister não só produzir valor-de-uso, mas produzi-lo para outros, dar origem a valor-de-uso social".[3]
É exatamente o que acontece com os alunos. A função do professor passa a ser a de adicionar valor a uma mercadoria. "A lei estipula aumento progressivo da carga horária. Antes, no modelo anterior, eram, no mínimo, 800 horas-aula por ano (total de 2.400 no ensino médio inteiro). O novo ensino médio propõe ampliar o tempo de aulas diárias, adotando um formato de tempo integral. Até 2024, o dia letivo deve ter 7 horas, chegando a 1.400 horas/ano". Sendo assim, com mais horas para produzir a mercadoria, o aluno custará mais no mercado de trabalho. Ou melhor, o aluno custará o preço que o mercado acha justo pagar.
Esse indivíduo só se torna mercadoria quando satisfaz as necessidades sociais. Quem dita as necessidades sociais no capitalismo atual é a configuração social orquestrada pelo neoliberalismo, de modo que "se antes o modelo antigo era visto mais como uma preparação para o ensino superior, agora a proposta é dar uma formação mais voltada ao mercado de trabalho".
Embora seja essa a intenção, a ideia de liberdade individual é hipocritamente valorizada. O aluno, como uma mercadoria, deve se preparar para satisfazer as necessidades do seu comprador, não as suas próprias. Mas a ilusão de escolha é incrivelmente destacada afirmando-se que "cada estudante passou a poder montar seu próprio ensino médio, escolhendo as áreas (os chamados "itinerários formativos") nas quais se aprofundará". Trata-se do que os liberais chamam de "escolha racional". “A premissa da escolha racional é que o homem age por meio do cálculo entre custo e benefício”, “uma visão altamente individualista do homem”.[4] No entanto, o que acontece é que os alunos se tornaram livres para escolher que disciplina irá gerar mais valor devido a sua utilidade para as necessidades do mercado.
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Mas é óbvio que os alunos das escolas de elite (sendo públicas ou privadas) vão continuar sendo uma mercadoria mais cara. Afinal de contas, continuarão sendo preparados para o ensino superior, o que significa mais tempo de trabalho docente dispendido para a produção do discente como mercadoria.
Ou seja, no fim trata-se de uma formação econômica em detrimento da política, um projeto de poder liberal que visa libertar a economia capitalista e seus mercados, “não dos Estados, uma vez que os primeiros continuarão a ser dependentes da proteção dos últimos em muitos aspectos, mas da democracia enquanto democracia de massas”.[5] Afinal de contas, uma mercadoria de boa qualidade é aquela que não contesta, apenas realiza as tarefas determinadas por aquele que a comprou.
O objetivo é impedir que as pessoas participem do que é econômico, o que em muitos casos é chamado pelos liberais de "técnico". O cidadão deve apenas trabalhar. E quando houver debates sobre a autonomia do Banco Central, arcabouço fiscal, reformas trabalhistas e até mesmo educacionais, os indivíduos devem ficar calados, ouvindo apenas as recomendações dos comentaristas dos veículos de imprensa.
Precisamos lembrar Paulo Freire. As disciplinas "técnicas" não são neutras, embora seja esse um dos argumentos que legitimam a reforma. Simplesmente porque a realidade também não é neutra. "A técnica, em si mesma, como instrumento de que se servem os seres humanos em sua orientação no mundo, não é neutra".[6] Essa reforma como uma imposição sem a participação popular, e diz solucionar o problema da educação, é uma falsa generosidade do opressor que, por sua vez, criou a marginalidade do oprimido. É lutando, como frisa Paulo Freire, "pela restauração de sua humanidade estarão, sejam homens ou povos, tentando a restauração da generosidade verdadeira".[7]
[1] FISHER, M. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2022, p. 75.
[2] MARX, K. O Capital. Livro 1 vol 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 61.
[3] Id, p. 63.
[4] SPRING, J. Como as corporações globais querem usar as escolas para moldar o homem para o mercado. Campinas, SP: Vide, 2018, p. 25.
[5] STREECK, W. Tempo comprado. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 92.
[6] FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 43.
[7] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 31.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.