CINEMA

X-Men: Diversidade representativa e de representação – Por Filippo Pitanga

À luz do retorno ao universo cinematográfico Marvel (MCU) da equipe mutante mais querida do mundo, vamos analisar como novas sagas mais plurais ajudam a construir narrativas inovadoras

Créditos: Divulgação
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Uma questão incontornável e indiscutível a se debater no audiovisual, agora mais do que nunca, é decerto a reparação histórica no desenvolvimento narrativo de personagens femininas tridimensionalizadas, especialmente em roteiros do universo pop com alcance de massas. E, à luz do regresso da famosa equipe de super-heróis X-Men (eterna metáfora de combate à intolerância), que está sendo repescada no bem-sucedido universo cinematográfico Marvel (MCU), a partir da aquisição da extinta 20th Century Fox pela Disney Pictures, com novas produções envolvendo mutantes, como o esperado filme “Deadpool 3”, que trará o ator Hugh Jackman de volta ao papel eternizado de Wolverine, vamos debater a fonte original nas novas sagas da HQ dos X-men que estão nas bancas (edição 55 à 57, “Sins of X” e a vindoura “Sins of Sinister”, prenunciando a queda de Krakoa).

Façamos um estudo de caso pra exemplificar na prática o que podemos e queremos ver nos cinemas a partir de evolução de desenvolvimento narrativo. E, mesmo para quem não conhecer tais personagens, expliquemos melhor abaixo os conceitos para entender melhor como podem ser aplicados de forma mais plural. Comecemos por uma das heroínas favoritas da HQ, até hoje jamais representada à altura nos cinemas: Ororo Munroe, a Tempestade. Além de analisarmos também outra personagem sempre subestimada até nos quadrinhos, mas que agora vem finalmente sendo bem trabalhada: Lorna Dane, Polaris.

A primeira sempre foi poderosa, deusa no Quênia, Rainha em Wakanda desde o casamento com Pantera Negra, e líder dos X-men, com ou sem poderes ou cabelo moicano. Seu ponto fraco, como todos heróis têm, era a claustrofobia, metáfora do medo de se sentir sufocada numa sociedade racista, subtexto eterno de combate à intolerância nas tramas dos X-men. Assim como ela, alguns personagens super poderosos não se liberavam 100% por travas internas. Polaris é outro exemplo. Sempre foi vista como vulnerável e instável (características tidas como fraquezas), não obstante possuir o mesmo poder do onipotente pai Magneto... Mas, diferente dele, sempre foi colocada num estado emocional à beira de enlouquecer ou sendo manipulada por vilões. Os roteiristas demoraram a diagnosticá-la nas HQs como bipolar e a começarem a combater a psicofobia acometida a personagens neurodivergentes, de modo a lhe apregoar autonomia e autocontrole. Nenhuma doença tem de ser um problema, e sim a falta de conhecimento e tratamento.

Enfim, tais personagens vêm sendo escritas como merecem, ainda que haja fãs nerds (incels) reclamando que elas estão "poderosas" ou invencíveis demais. Evidente que o fato de elas estarem bem resolvidas não retira o potencial de ambigüidades cênicas pra complexificá-las e lhes dar dúvidas, erros e superações nos roteiros atuais. Tempestade é ora Regente de Marte e porta-voz do Sistema Solar. Polaris terminou o doutorado, virou fashionista, e freqüentemente é desenhada agora com óculos escuros cheios de estilo e com copo de café Starbucks sempre à mão – símbolos emancipacipatórios de uma personagem mais moderna.

Por muito tempo o principal recurso dramatúrgico usado em personagens poderosas demais era um estereótipo raso de "enlouquecer" com seus próprios poderes que as consomem. A cinefilia em geral pode atestar que, não raro, em dramas humanos, esse estereótipo também era usado mesmo sem "poderes especiais", como se para lidar com a família, trabalho, amor e ainda ser bem-sucedida em tudo, a mulher só pudesse alcançar um ponto de colapso como clímax narrativo. Na verdade, não há vergonha nenhuma no colapso, já que a estas personagens foi imposto o peso do mundo por tempo demais, sem cobrarmos o mesmo dos homens. Bem..., tudo isso contanto que o colapso não seja uma única resultante incontornável dessa potência feminina, como escolha clichê para roteiristas de desfecho pra essas mulheres tão poderosas, ou como se “poder” fosse sempre um castigo pra elas (e nunca para os homens).

Nas HQs, personagens costumavam "enlouquecer" com seus poderes e virar vilãs: como Feiticeira Escarlate (que, no último filme do Dr. Estranho, teve sua maternidade vilanizada); ou Jean Grey, a famigerada Fênix dos X-men, que sempre alcança o auge e enlouquece nas chamas pra virar cinzas num ciclo eterno. Ambas já foram muito injustiçadas, temidas e estigmatizadas. Ambas já foram odiadas e descartadas, mortas e ressuscitadas, ou até distorcidas pelos roteiristas. Feiticeira deixou de ser mutante, deixou de ser filha biológica de Magneto e passou a ser e depois deixou de ser a traidora dos mutantes. Enquanto Jean já sofreu adultério do "marido perfeito", teve clones e filhos adotivos destes clones e realidades alternativas, e morreu “n” vezes. Enfim, ela detém a autonomia sobre si mesma. Porém, que custo essa autonomia tem?

A mesma coisa também se aplica a personagens como Tempestade e Polaris. A primeira já foi negligenciada por quase duas décadas, sem estar no devido e merecido centro das narrativas, já que ostenta o marco de ter sido uma das primeiras heroínas negras protagonistas no universo Marvel, fruto da luta afirmativa das décadas de 60 a 70 e de ícones reais como Angela Davis e Assata Shakur, e cuja potência intimidava os roteiristas. Chris Claremont havia escrito muito bem sua personagem, principalmente na década de 80. Pois, até quando tirou seus poderes, a manteve como líder dos X-men por direito conquistado na garra, estreando o famoso penteado de moicano, algo que ela preservaria até hoje (tanto o conhecimento de luta liderança sem super poderes, quanto o moicano, que, à despeito do cabelo comprido, ela vem preservando as laterais raspadas). Sem falar nas roupas que foram ganhando suas raízes ancestrais e traços da realeza que sua personagem adquiriu quando casou com o Pantera Negra e manteve esta postura mesmo após o divórcio. Hoje, ela é a chave de salvação do universo Marvel após a traição de Sinistro, que derrubou até Vingadores e Quarteto Fantástico e adulterou o gene mutante (menos o dela!).

A mesma coisa pode se dizer da nova Polaris autocentrada e em paz com sua neurodivergência. Polaris ajudou o novo X-Factor, que era a equipe mais diversa em termos de sexualidade LGBTQIAP+ já vista em HQs, sob o comando da ótima roteirista Queer Leah Williams, e, não à toa, investigava os mortos da Nação Mutante para poder ressuscitá-los, desinvizibiliando narrativas que tentaram apagar. E, além de resolver o assassinato da própria irmã Feiticeira Escarlate, ajudou-lhe a voltar à vida e a criar um paraíso mutante imortal em Krakoa. Sem falar que agora Polaris é uma das mutantes mais poderosas da nova equipe de X-men, finalmente como protagonista do time principal, e não mais coadjuvante ou figura apenas de bastidores. Ela participa de decisões da equipe e pode mudar o rumo de batalhas para salvar a equipe inteira por conta própria, sem culpa ou dúvida.

E notem que escritores mais diversos ajudaram e muito nisso. Nomes como Vita Ayala, pessoa não-binária e negra, roteirizaram equipes como os Novos Mutantes e até os Carrascos, além da equipe principal dos X-men, que já passou igualmente por suas mãos – especialmente em sagas cruciais, como “X de Espadas”, onde Tempestade começou a crescer de fato, por exemplo, antes mesmo de a personagem brilhar agora em “X-men Red”. E cada vez mais artistas diversos e representativos estão agregando e pensando fora da caixinha na equipe criativa dessas HQs, como pessoas trans ou Queer, vide Charlie Jane Anders e Tini Howard, respectivamente. Ainda bem, pois quem sai ganhando somos nós, leitores e espectadores que terão a chance de ler, demandar e acompanhar tais sagas potencialmente adaptadas depois para os cinemas. Que venham muitas mais histórias plurais.