Eu tinha 15 anos quando vi “Gran Torino” (dir. Clint Eastwood, 2008) no cinema. Ele não me interessou especialmente na época ou depois, na revisão, e nem sou nenhum entusiasta do cinema de Eastwood. Mas algo relevante surgiu na experiência com esse filme em particular.
“Gran Torino”, uma narrativa a rigor convencional, um drama comercial sem excessos que nunca quebra com a forma precisa de uma linguagem bem estabelecida do cinema (aquela creditada ao cinema clássico estadunidense) é enriquecido com uma clareza de sentido que atravessa todos os seus planos. Como espectadores, temos uma limpa compreensão do mundo do filme, dos personagens, das trocas dramáticas e dos valores ali encenados. Esse tipo de cinema, que tem em Eastwood um de seus últimos trabalhadores vivos, é cada vez mais raro, como os devotos do diretor sempre estão dispostos a apontar.
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Esse tipo de lamento se tornou recorrente em um núcleo da cinefilia. Não é um questionamento em relação ao cinema com que costumo me engajar. Gosto e muito da linguagem clássica do cinema estadunidense, mas acredito que há na idealização da forma limpa, que comunica o mundo e seus valores com clareza (e destreza formal, uma planificação ímpar) e com intervenção mínima nesse mundo, a implicância de um discurso conservador sobre o cinema. Nesse discurso, linguagens não canônicas, principalmente de cinemas estrangeiros ao cinema estadunidense e europeu (e às convenções expressivas e estéticas mais normativas de seu cânone), são rapidamente descartadas como pouco interessantes ou esteticamente menores.
Ainda que eu não compartilhe de uma idealização dessa forma audiovisual como um cinema puro ou cinema narrativo em sua essência mais indispensável, pelo menos me pego pensando no que restou ao drama estadunidense no cinema: quem são seus novos diretores, quais são seus filmes, que forma audiovisual e narrativa esses filmes adotam? Quando respondemos a essa sequência de questões, parece-me que os principais nomes que aparecem são de autores que transitam entre o drama e outros gêneros. E, enquanto Denis Villeneuve parece ter completado uma transição do drama com significativos elementos de fantasia para a ficção científica propriamente dita de grande orçamento, Ari Aster, até agora com apenas três filmes, parece ter se consolidado dirigindo um cinema de terror fortemente dramático.
Desde os anos 1950, com “O mensageiro do diabo” (dir. Charles Laughton, 1955), a intercessão entre o horror e o drama foi se desdobrando em uma forma recorrente para o primeiro desses gêneros. Os excessos do horror, nesses casos, geralmente não alcançam (ou, quando o fazem, projetam-se para algo além disso) o prazer audiovisual associado ao susto, ao grotesco e à tensão provocada pelos elementos típicos do gênero. Há, se não uma substituição total, uma alternativa a isso colocada pelo terror como metáfora para o trauma, a violência abusiva, o sofrimento, o luto etc. E essa metáfora, no horror dramático, tende a se colocar de uma forma que seja distinta do entretenimento e do prazer audiovisual associado ao gênero por outros filmes (como o slasher ou o filme de monstro).
Ari Aster foi, desde seu primeiro filme, celebrado por trabalhar o gênero partindo desse lugar compartilhado com o drama. “Hereditário” (dir. Aster, 2018) é um filme de luto com vários elementos identificados como de horror, mas esses elementos não estão em cena para explorar o prazer audiovisual associado ao gênero, e sim para desenvolver o sofrimento dos personagens, principalmente da protagonista interpretada por Toni Collette. Os sintomas horríficos que vemos podem ser facilmente localizados como parte de uma experiência de trauma atordoante e o filme parece propositalmente deixar esse caminho de leitura aberto. “Midsommar: o mal não espera a noite” (dir. Aster, 2019) é diferente, mas não muito. O filme se baseia no trauma e trabalha o horror como um desdobramento de uma experiência aterradora anterior à fantasia, mas existe também algum desejo de fazer surgir na forma audiovisual figuras, imagens e gestos coreográficos que despertem respostas sensíveis independentes da trajetória dramática atravessada pela personagem.
E aí temos “Beau tem medo” (dir. Aster, 2023), seu filme mais recente. Beau (Joaquin Phoenix) é desenvolvido, invariavelmente, com base em uma vivência familiar traumática de um personagem. Beau nunca conheceu o pai, que sua mãe, Mona (Patti LuPone), diz ter morrido em sua noite de núpcias devido a um grave problema cardíaco genético que provavelmente foi herdado por Beau. No desdobramento do filme, é notável que Mona exerce um tipo de controle violento sobre a vida de Beau. Os parâmetros dessa relação abusiva vão se revelando em sequências farsescas diversas, desde flashbacks até pontos de virada e revelações na trama. Quando, em meio ao desfecho climático do filme, tudo isso é posto às claras para o espectador, o filme literaliza o abuso em algumas sequências mais de farsa satírica que reiteram o que já foi textualmente expresso pelo filme.
Antes do clímax, o filme é organizado como uma sequência de atos distintos que exploram, cada um a seu modo, a percepção disparatada que Beau tem do mundo, quando todos os outros (ou a maior parte deles) lhe provocam absoluto horror. Essas esquetes são trabalhadas com algum humor que nos convida a rir de todo o pavor do universo de Beau, que aparece como uma figura ridícula, incapaz de alcançar independência ou de navegar o mundo com qualquer indício de autonomia. O humor assíduo parece ser um elemento a que o filme recorre para rir de Beau ou para demonstrar que o resto do mundo, implicado inclusive em nós como espectadores, ri dele.
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Essas esquetes servem também para literalizar toda a estranheza da experiência. Beau é um personagem que sofreu um abuso emocional indescritível por parte da sua mãe, mas que o filme se esforça para descrever não nos gestos dos atores – Phoenix, seu protagonista, não é francamente capaz de revelar personagem nenhum em uma atuação monótona, repetitiva, caricatural (no pior sentido), em que ele só faz reiterar o mesmo conjunto de reações ao mundo atordoante de seu personagem –, não na linguagem, mas em metáforas estapafúrdias, explicitadas em cenas que parecem ansiosas em dizer algo sobre os personagens, mas que, mesmo falando excessivamente sobre eles, mesmo criando um vasto material simbólico em torno desses traumas, ainda assim consegue sem incapaz de dizer qualquer coisa de interessante.
Quando me desfaço de “Beau tem medo” pensando no cinema de Clint Eastwood, eu o faço porque me sinto apegado a algo de belo que encontramos na clareza do drama, na economia do gesto que revela, formalmente, o sentido, o discurso e a verdade que se quer expressar. Sempre me recordo de um evento em que ouvi um crítico de cinema falar sobre o filme “Batman vs Superman: a origem da justiça” (dir. Zack Snyder, 2016). Esse crítico falava que o filme o encantava porque o cerne narrativo dele estava na relação entre os dois principais personagens com a mãe. Eu vi o filme e acho essa conclusão por si só já questionável, mas para além dela outra coisa me incomoda: nada na forma audiovisual de “Batman vs Superman” é capaz de comunicar sobre a relação entre os personagens e a mãe, então o momento em que isso aparece é em um diálogo altamente expositivo, exemplar de uma solução piegas que não se ancora em lugar nenhum da linguagem desse filme.
Incomoda-me o desejo de criar sentido (e sentido indisputável) a partir de elementos metafóricos e textuais que parecem não ter nenhum interesse em usar a planificação, a composição de cena como uma linguagem a ser explorada também na direção de se alcançar o sentido. Prefere-se o simbólico, mas é um simbólico aqui completamente desinteressante, que se dá pela via do significado já resolvido, por exemplo: o conflito entre dois super-heróis de imenso poder é sobre a relação com a mãe; o personagem de meia idade que tem um orgasmo pela primeira vez na vida e espera morrer em decorrência disso, mas se vê vivo e com sua parceira morta, congelada como uma estátua por cima dele (sequência de “Beau tem medo”) é também sobre a relação com a mãe (o que é explicitado imediatamente pelo próprio filme). O problema não é só a metáfora, mas a pobreza dramática dessa metáfora, o quão pouco ela tem a dizer além de apenas expor a si mesma e se resolver em cena.
O sentido e a linguagem do cinema podem ser tão complexos quanto incomplexos. Se recusar a lamentar a suposta morte de um cinema dramático canônico, fundamentado no que seria entendido como a clássica linguagem cinema, é reconhecer que trajetórias formais alternativas a essa linguagem oferecem muito ainda a uma exploração estética do drama no audiovisual. O horror dramático explora algumas dessas possibilidades, e a metáfora cumpre uma função muito interessante nessas experimentações, mas o trabalho metafórico é sempre necessariamente um meio, é sua função mediar linguagem com sentido. Quando tanto a linguagem quanto o sentido se contentam com a existência da metáfora entre eles, e são exercidos apenas como sujeitos de uma metáfora, ela não tem qualquer trabalho para exercer em cena e é sacudida de um lado para o outro como um tipo de bibelô descartável nas mãos do diretor, do protagonista ou do espectador. “Beau tem medo” funciona, enfim, como uma sequência desses bibelôs sendo sacudidos de um canto para outro da tela dando várias voltas para chegar nos mesmos lugares e concluir, através de quase 3 horas, as mesmas coisas. Não tem a simplicidade por alguns idealizada do drama, mas não tem qualquer complexidade tampouco.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.