O fenômeno ocorre em todas as áreas. Há filmes baseados em peças, peças em filmes, filmes em livros, poemas em romances e por aí vai. O que há de novo de alguns anos pra cá, sobretudo na nossa música popular, são as canções baseadas em... outras canções.
O compositor preferido, ao menos em um pequeno ranking levantado por aqui, é o americano Bob Dylan, Nobel de Literatura de 2016. Uma das mais, digamos assim, descaradamente “inspiradas” em canções de Dylan é a divertida e muito bem construída “Essa linda canção”, de Marcelo Nova e gravada pela sua então banda, o Camisa de Vênus:
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Eles lhe fodem se você vai trabalhar
Eles lhe fodem quando querem seu lugar
Eles lhe fodem se você é um campeão
Eles lhe fodem se você é um cuzão
Mas esse caminho é tão comprido
Todo mundo tá fodido
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Tanto a melodia quanto a estrutura da letra são baseadas na canção “Rainy Day Women #12 & 35”, que Dylan gravou em seu antológico álbum “Blonde on Blonde”, de 1966. A canção original diz, em tom um tanto mais suave:
They'll stone you when you're trying to be so good
They'll stone you just like they said they would
They'll stone you when you're trying to go home
They'll stone you when you're there all alone
But I would not feel so all alone
Everybody must get stoned
Em tradução livre:
Eles te apedrejam quando você estiver tentando ser bom
Te apedrejam como eles disseram que fariam
Te apedrejam quando você estiver tentando ir pra casa
Te apedrejam quando você estiver lá sozinho
Mas eu não me sentiria tão sozinho
Todo mundo deve ser apedrejado
Por você, de Frejat e cia.
Outro caso é a canção “Por você”, assinada por Frejat, Mauricio Barros e Mauro Sta. Cecília. Neste caso, a ideia é basicamente a mesma de “If not for You” (Se não fosse por você), de Dylan, lançada em 1970, tanto pelo autor quanto por George Harrison em seu álbum “All things must pass”, do mesmo ano.
Por você eu deixaria de beber
Por você eu ficaria rico num mês
Eu dormiria de meia pra virar burguês
Eu mudaria até o meu nome
Eu viveria em greve de fome
Desejaria todo dia
A mesma mulher
Em “If not for you”, Dylan canta:
If not for you
Babe, I couldn't find the door
Couldn't even see the floor
I'd be sad and blue
If not for you
Em português:
Se não fosse por você
Meu céu cairia
A chuva se recolheria também
Sem você, amor, eu estaria em lugar nenhum
Eu estaria perdido, se não fosse por você
E você sabe que é verdade
Esse cara não sou eu
Há outro caso de canções dialogando que já comentei por aqui. É muito provável, por exemplo, que Roberto Carlos já tivesse ouvido o clássico “It Ain’t me, Babe”, de Bob Dylan, antes de compor o seu último grande sucesso “Esse Cara Sou Eu”. Não se trata de forma alguma de plágio e nem nada parecido. O fato é que uma canção é o negativo da outra, o seu antônimo.
A canção de Dylan, lançada em 1964, no álbum “Another Side of Bob Dylan”, é uma espécie de hino às avessas do casamento convencional, do relacionamento amparado pela força do macho nunca fraco, sempre forte e pronto a abrir toda e qualquer porta. Alguém que ame a mulher mais que a própria vida e ainda mais. Se este é o cara que a interlocutora de Dylan espera, o próprio responde com sarcasmo, de forma direta e fulminante: “Esse não sou eu, garota, não, não, não sou eu quem você procura”.
Roberto Carlos, dos píncaros do seu bom mocismo, construído ao longo dos anos sobre um manto de respeito profissional inquestionável e muita religiosidade – coisa que Dylan coincidentemente também se cercou durante um breve momento da sua vida – diz o contrário e se coloca totalmente à disposição da mulher. Nela ele eleva o seu “Amante à Moda Antiga” à enésima potência e se transforma no cara que “Esbarra em quem for que interrompa seus passos, que está ao seu lado pro que der e vier, o herói esperado por toda a mulher”.
Leonard Cohen
A despeito disso tudo, a canção de Roberto parece também ser baseada em outra. “I’m your man”, do compositor, cantor e escritor canadense Leonard Cohen. De uma beleza explosiva, com versos também apaixonados, à moda de Roberto, Cohen afirma fazer todo o possível e imaginário por sua musa:
If you want a lover
I'll do anything you ask me to
And if you want another kind of love
I'll wear a mask for you
If you want a partner
Take my hand
Or if you want to strike me down in anger
Well, here I stand
I'm your man
Em português:
Se você quiser um amante
Eu farei tudo o que me pedir
E se você quiser outro tipo de amor
Eu usarei uma máscara por você
Se você quiser um parceiro
Toma a minha mão
Ou se quiser me derrubar, de raiva
Aqui estou eu
Eu sou seu homem
Há vários outros exemplos, uns mais outros menos bem sucedidos. São, como disse acima, canções que dialogam. Canções que, no mínimo, citam umas às outras. O que fica de melhor nessa história é que as boas ideias se espalham e se transformam, criando novos públicos e se prolongando mundo afora.