Em mais um absurdo caso de racismo religioso, o Brasil (ou pelo menos parte dele) assistiu, atônito e incrédulo, a mãe de um aluno vandalizar um livro INFANTIL do rapper Emicida. O caso aconteceu em Salvador, na Bahia e a mulher, uma fundamentalista cristã, fez anotações em todo o livro contrapondo as informações do autor com versículos bíblicos e frases tipicamente baseadas em informações rasas ensinadas em muitas igrejas de vertente conservadora e fundamentalista.
O livro “Amoras”, que fiz questão de ler para escrever esta coluna, é uma celebração da diversidade e da negritude. Uma ode à igualdade e repleto de conceitos que promovem o respeito religioso, a diversidade de ideias e religiões, a simplicidade das coisas naturais e o orgulho de uma menina preta em se identificar como tal, na beleza preta de uma amora, podendo declarar feliz “eu sou pretinha também!”
Mas não existe amor numa mente fundamentalista. O mote celebrado pelo fascismo brasileiro “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” não admite possibilidades e pluralidades. É só um tipo de Brasil, machista, misógino, racista, lgbtfóbico e um único Deus, refém de uma teologia patriarcal, misógina, que não admite alguém que não reze segundo a sua interpretação da Bíblia e que mandará todos os que não pensam como eles a uma churrasqueira eterna, que denominam Inferno.
O deus fundamentalista não é, definitivamente, o que se revela em Jesus, o pobre não-branco de Nazaré. O deus fundamentalista é o deus que mata, o deus que se mostra em Jesus é o deus que morre. O deus fundamentalista é um genocida e é por isso que encontra lugar em governos genocidas, enquanto Jesus é a expressão de um deus que acolhe, abraça, é plural e diverso. O deus homicida odeia o deus de Emicida. Porque o Deus de Emicida é múltiplo, tem vários nomes, várias faces, pode ser deus, deuses, pode ser deusa, deusas, pode ser quem quiser ser. Isso jamais será admitido por um fundamentalista.
Mas como destaca o livro de Emicida, nas artes e ilustrações belas e singelas de Aldo Fabrini, “Nada foi em vão”. O fato de o livro causar esse alvoroço numa mente fundamentalista nos mostra o quanto é preciso investir na educação plural e diversa de nossas crianças, para que não sejam “como nossos pais”. Não foi em vão a luta de negros e negras para que essa possibilidade da história e das histórias chegassem em nossas escolas. Não foi em vão a nossa luta para riscar do governo o fascista golpista e desumano que ocupava a presidência. Temos um país enorme a construir.
Das frases escritas por essa fundamentalista no livro de Emicida, algumas me chamaram muito a atenção, como a afirmação de que a humanidade não nasceu na África, porque Gênesis de 1 a 9 não diz assim. Desconhecimento bíblico e histórico. E culpa de pastores que sabem (porque estudaram isso, se é que fizeram realmente um curso de teologia!) que a narrativa é mítica, mas empurram como verdade histórica para suas “ovelhas”, que mansamente engolem tudo que lhes é ensinado. E por fim a frase “eu não recomendo livros religiosos (???) em escolas já que a Bíblia foi retirada de lá”. Perigo mesmo é a Bíblia em escolas onde os livros de história, filosofia e sociologia já não são lidos.
Por fim, como fruto do racismo religioso que permeia todo esse caso, a afirmação de que os “orixás são ídolos africanos cujo sua personalização é assumida por entidades consideradas pelo cristianismo “anjos caídos”. Anjos caídos é outra designação para “demônios”. Mais um absurdo já que diabos e demônios existem na doutrina cristã, mas não nas religiões de matrizes africanas. Em outras palavras, demônio é um problema do cristianismo, ele que se resolva com ele mesmo e deixe, só deixe, as outras religiões serem felizes com sua liberdade, seus deuses, seus cultos e seu jeito belo de ser, que só enriquece a nossa nação brasileira.
Creio no Deus que é amor, onde Amoras são e serão sempre bem-vindas e abraçadas. Obrigado, Emicida!
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.