Se relacionarmos as teses de Wolfgang Streeck[1] sobre o adiamento do fim do capitalismo às teses de Frederick Jameson sobre a lógica cultural do capitalismo tardio, podemos contribuir para compreender melhor o fato de que "a nova cultura pós-moderna global, ainda que americana, é expressão interna e superestrutural de uma nova era de dominação, militar e econômica, dos Estados Unidos sobre o resto do mundo".[2]
O filme indicado ao Oscar, "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo", é produzido em um momento em que o capitalismo neoliberal vem sofrendo diversos ataques. Contudo, o filme parece querer nos ensinar a conviver com as nossas crises (geradas pela crise do capital).
A imigrante chinesa Evelyn Wang está vivendo uma crise familiar. Ela vive entre seu marido, que parece ser um conformista, e sua filha que se revela gay, mas que não pode demostrar sua orientação sexual para o avô, um troglodita chinês. A leitura é simples, a filha representa a vida moderna americana e o pai o atraso chinês. Um discurso imperialista estadunidense na disputa pelo mercado cultural mundial.
Para piorar a situação, Wang enfrenta problemas com a Receita Federal. A burocrata Deirdre quer tomar a lavanderia caso Wang não pague suas dívidas.
O filme se desenrola na tensão entre a promessa liberal do "indivíduo livre feliz" (seja o que quiser, crie um negócio, com esforço tudo dará certo etc.) e a dificuldade de realização de tal promessa. No caso, o que impede essa promessa de se realizar é a intervenção estatal. Deirdre, a funcionária da Receita Federal, é uma tirana. Ela é manipulada pela vilã do multiverso que, por sua vez, é filha de Wang.
Mas não há uma revolta direta do sonhador liberal contra o Estado que supostamente só atrapalha. Em vez disso, vemos um discurso perspectivista. Abre-se uma fenda interdimensional na qual outros mundos são revelados. Seu marido de outra dimensão é um hábil lutador de Kung-fu, habilidade que Wang também irá adquirir após ter contato com seus outros eus.
Ela se vê em outras vidas. Em uma delas é uma atriz bem-sucedida, em outra, num universo em que os dedos humanos são pênis, ela tem uma relação amorosa com Deirdre. Todas essas vidas serviram para pensar em si própria.
Concordamos com Frederick Jameson, a lógica cultural do capitalismo tardio eliminou a profundidade dos filmes. O modelo dialético, existencialista, a oposição semiótica entre significante e significado… Tudo foi abandonado. "O que substitui esses diversos modelos da profundidade é, de modo geral, uma concepção de práticas, discursos e jogos textuais". A "profundidade é substituída pela superfície, ou por múltiplas superfícies".[3]
Depois que Wang teve acesso às múltiplas superficialidades, ela se tornou superficial. Desistiu de se estressar e se entregou a sua realidade da maneira que ela se apresenta. No final do filme, ela já não ouve mais o que a fiscal da Receita Federal fala, apenas aceita, como se estivesse chapada de alguma droga.
Não estamos na época de Van Gogh em que a ansiedade e alienação são discutidos como elementos da profundidade de uma produção artística como “O grito”. Estamos em um mundo em crise em que a ansiedade se tornou comum, mas deve ser extirpada. O excesso de informações, de telas, de imagens serve para encararmos o mundo em sua permanência, sem pensar em sua profundidade. Somos até capazes de esquecer a história que há por trás das coisas, sendo condenados a vivê-las.
Somos uma sociedade em que a imagem vale por si só. É a vitória do simulacro, "a cópia idêntica de algo cujo original jamais existiu". "Uma sociedade em que o valor de troca se generalizou a tal ponto que mesmo a lembrança do valor de uso se apagou".[4]
Isso nos leva a essa nova lógica do excesso. "Não estamos mais na estética modernista da ruptura, mas na estética hipermoderna da saturação, tendo por objetivo a vertigem, a sideração do espectador".[5] Esse efeito do hipercinema que atinge o espectador é o que transforma a protagonista no final do filme. O excesso a deixou em vertigem e desta maneira ela aceita a vida como ela é. E nós, os espectadores, que consumimos diversas imagens e micro-histórias fantásticas em um período curto de tempo, acreditamos ter valido a pena pagar o ingresso. Se paguei, quero ter o máximo de prazer possível…
O excesso de superficialidades é uma forma que o capitalismo usou para comprar o tempo. Além de adotar diversas políticas econômicas e militares para adiar o seu fim, o capitalismo nos mantém em crise constante prometendo que o modelo neoliberal dará certo um dia. Enquanto isso não acontece, vendem-se imagens em excesso que consumimos em sequência. Antes de pararmos para pensar na primeira imagem já somos agraciados com a segunda repleta de mais superficialidades. E, assim como Wang, continuamos a viver entorpecidos, mas obedientes.
[1] STREECK, W. Tempo comprado. São Paulo: Boitempo, 2018.
[2] JAMESON, F. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997, p. 31.
[3] Idem., p. 40.
[4] Idem, p. 45.
[5] LIPOVETSKY, G. e SERROY, J. A tela global. Porto Alegre: Sulina, 2009, p. 72.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.