Dia 8 de janeiro de 2023. Ataque aos três poderes da nação. Após quatro anos de governo Bolsonaro sob permanente ameaça de ruptura institucional, após sete dias da assunção de um novo governo, a democracia treme. Líderes de todos os setores clamam pela inviolabilidade democrática. A anarquia se instala arquitetada por “forças ocultas” - memória de uma renúncia em 1961 que, graças ao movimento da legalidade, a democracia sobreviveu com dificuldade -, sempre conspiratórias contra a democracia.
É um fato que a palavra mais pronunciada é “defesa” da democracia. Não é só uma palavra, tem de ser um espírito público entranhado na história nacional e que não estamos dispostos a perder. Temos que cultuá-la, protegê-la, ter, diuturnamente, o valor de sua presença, pois é quando temos o risco de perdê-la é que a lembramos inserida em nossa história republicana. O quanto as ditaduras e golpes atingiram os brasileiros durante 21 anos de torturas, cassações, desaparecimentos, propiciados pela queda e ruptura democrática de 1º de abril de 1964.
Os espaços de memória foram esquecidos como instrumentos culturais e cívicos, que se inserem na pouca importância e falta de visão de governantes obtusos, politicamente hipócritas, que não creem na necessidade de o povo brasileiro conhecer suas tragédias mais de perto, para não voltar a repeti-las.
Oscar Niemeyer tinha essa visão e, corajosamente, queria concluir o projeto arquitetônico do Eixo Monumental na capital da Republica, com uma obra que homenageasse a democracia. Que condenasse a intervenção militar e lembrasse permanentemente o Golpe de 1964, para que nunca mais acontecesse.
O Instituto Presidente João Goulart recebeu do grande arquiteto esse ultimo projeto para o Eixo Monumental, com muito orgulho e honra. Lutou durante sete anos no processo administrativo, que após toda a tramitação ganhou espaço no Eixo Monumental para construir o Memorial que reverenciaria a DEMOCRACIA, e levaria o nome do presidente golpeado em 1964: Presidente João Goulart.
O espaço seria cessão de uso, o que quer dizer que tudo o que ali se construiria faria parte do patrimônio público, do povo brasileiro, especialmente do Distrito Federal (DF). Foi outorgado pelo governo do DF, na administração Agnello Queiroz, e cassado, a seguir, pelo então governador Rodrigo Rollemberg, do PSB, um partido de esquerda que hoje prega e defende a democracia. Porém, cassou a história do golpe e do presidente João Goulart, deposto e morto no exílio, lutando contra uma ditadura feroz, por aqueles que submeteram o Brasil a uma tormenta de opressão e medo, durante 21 anos. Tempo em que a nossa democracia foi enterrada na escuridão.
Jango foi cassado pela ditadura. Continua cassado. Foi cassado duas vezes, uma pela ditadura, outra pelo PSB.
Após o golpe parlamentar em Dilma Rousseff, também enterraram o Memorial da Anistia, que seria construído na Universidade de Minas Gerais, com todo o acervo das pessoas que foram anistiadas, além da tragédia dos relatos de torturas, quando não existia a democracia. Cultuemos a democracia sempre, não só nos momentos que a temos em risco.
Rever a Lei de Anistia é uma coisa que não fizemos, enquanto outros países que sofreram ditaduras nos anos 1970, como Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai e outros, não só constroem a cada dia esses novos “espaços de memória”, como fazem oficialmente o processo criminal para condenar e prender até hoje aqueles que defenderam torturas e violaram os Direitos Humanos. O Chile ainda busca locais onde aconteceram esses crimes contra humanidade e, a cada dia, detecta lugares onde as atrocidades foram cometidas, e as declaram como novos espaços de memória.
O povo que não conhece o seu passado, muitas vezes, não reconhece os efeitos psicológicos da iconoclastia que vimos, recentemente, na tentativa de outro golpe à democracia em nosso país.
A iconoclastia religiosa é tão forte que, recentemente, outro governador afastado por inoperância ou conivência, na tentativa do último golpe do dia 8 de janeiro, se esforçava, pública e mendazmente, criando a apologia da construção do memorial da Bíblia, em um país laico como o Brasil.
O projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer para o MEMORIAL DA “LIBERDADE E DEMOCRACIA” traz, em sua imagem, uma seta vermelha com o ano 1964, atingindo a cúpula projetada, justamente para que na capital da República, quem por ali passasse, ou entrasse para conhecer a tragédia da ditadura militar, pudesse refletir o que realmente são os governos autocratas do militarismo, onde o povo é esquecido para eleger seu presidente e o que vale são quatro estrelas, às vezes oito, promulgadas dentro da caserna.
Oscar Niemeyer defendia, assim, aquela seta tão vilipendiada até por governadores ditos de esquerda, que cassaram o Memorial, para se beneficiarem das benesses de grandes empresários locais em benefícios escusos:
“Quem conhece a história de João Goulart, sabe como foi violentamente afastado do seu cargo com o golpe militar de 1964, que durante vinte anos pesou sobre o nosso país. E isso eu procurei marcar na minha arquitetura, da forma mais clara, com uma grande flecha vermelha a atingir a cúpula projetada. Dentro do amplo salão de exposições seriam explicadas ao público as razões desse deplorável acontecimento, as pressões do governo norte-americano que o reacionarismo de direta naquela época procurava atender”, destacou o arquiteto maior.
São estes motivos do esquecimento da história, da pouca importância dada pela cultura nacional à preservação da memória da democracia, do reconhecimento dos centros de tortura, da falta de punição aos agentes do Estado e da militarização das polícias militares envoltas em desobediência com a pretensa custódia do Estado pelas Forças Armadas e da tutela pretendida sobre a Nação, é que surgem os desvarios fascistas dos momentos em que o Brasil solidário se ergue em luta contra o Brasil do ódio.
Ergamos e fomentemos os sítios de memória, pela democracia e pelo Brasil.
Lembrar é nunca errar novamente nosso destino, impedindo a repetição de novas tragédias. Muitos tombaram pelo caminho da redemocratização brasileira e merecem ser recordados, pois nos inspiram à liberdade e à democracia.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.