ENERGIA E INTERESSES

Governo Lula pode reestatizar distribuição de energia a custo zero, mas Alexandre Silveira não deixa - por Mauro Lopes

O ministro das Minas e Energia usa sua posição para defender os interesses das distribuidoras privadas de energia elétrica. E tem sido de grande ajuda para os negócios de Carlos Suarez, o rei do gás. Lula está incomodado, mas nada fez até agora

O ministro das Minas e Energia e ex-delegado de polícia Alexandre Silveira.Créditos: Senado Federal
Escrito en OPINIÃO el

O governo Lula tem a faca e o queijo na mão para começar a virar a página do desastroso -criminoso, pode-se dizer- processo de privatização da distribuição de energia no Brasil. Melhor ainda: a custo zero. Mas isso não acontecerá. O Ministério das Minas e Energia, comandado com mão de ferro pelo ex-delegado de polícia Alexandre Silveira, já decidiu que as distribuidoras continuarão nas mãos de empresas privadas, cada uma delas por mais 30 anos depois de 30 anos da primeira rodada de concessão dos serviços. É um escárnio, quase inacreditável que isso aconteça em pleno governo Lula. Mas é o que acontecerá, a não ser que o MME, como é conhecido o ministério, deixe de ser uma extensão dos interesses dos grandes capitalistas e seus lobistas. 

Silveira não é apenas patrocinador dos interesses das distribuidoras; se você quiser saber a que outros grandes grupos privados ele atende, precisa ler esta reportagem-artigo até o fim.

Vamos lá.

A partir de 2025, começam a vencer as concessões de 30 anos das distribuidoras de energia elétrica -obra de FHC a partir da lei de privatização do setor elétrico de 1995.

Três concessões vencerão até o fim do mandato de Lula: EDP Espírito Santo, Light e Enel Rio. Não é pouca coisa. Juntas, elas infernizam a vida de mais de 8 milhões de clientes.

Na hipótese de Lula reeleger-se ou caso faça seu sucessor, serão, até 2030, mais 16 empresas cujas concessões chegarão ao fim. As maiores são a malfadada Enel SP (7,45 milhões de clientes), a Neoenergia Coelba na Bahia (6,17 milhões), a CPFL Paulista (4,64 milhões), a Enel CE (3,81 milhões) e a Neoenergia PE (3,80 milhões). Somados os clientes das 19 empresas privadas cujas concessões vencem até 2030 o número alcança 54 milhões de pessoas que rendem aos cofres de um punhado de grandes empresários R$ 3 bilhões todos os anos. É mais que a população da Argentina. Se os clientes-vítimas das distribuidoras privadas fossem uma nação, deixariam para trás a população de nada menos que 168 países do mundo.

Veja a lista:

Ou seja, Lula e ele mesmo se for reeleito, ou seu sucessor, têm o condão de redesenhar a distribuição de energia no país. E, segundo Ícaro Chaves, engenheiro da Eletronorte, ex-dirigente da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras AESEL), ex-conselheiro da Eletronorte e um dos maiores especialistas em energia elétrica do país, “a um custo irrisório para o Brasil”. Basta não renovar as concessões. Os custos para isso, ele indicou, “seriam marginais”.

Se o governo Lula optar pela retomada das concessões, sequer poderá haver grita da direita e dos empresários de “quebra de contrato”, segundo explicou Chaves: “Não tem quebra de contrato. O contrato venceu. Tem um contrato de 30 anos. O governo federal diz ‘muito obrigado, Enel, muito obrigado EDP, muito obrigado Light. Obrigado, valeu. Agora eu quero esse serviço para mim de volta’”.

Com isso, o setor de distribuição poderá retornar às mãos do Estado brasileiro. 

Mas o MME e Alexandre Silveira não pretendem permitir que isso aconteça. 

Com o fim de cada concessão, o governo federal tem diante de si três opções: renovar, fazer nova licitação ou retomar o serviço.

Com a safra de fim de concessões que se abre em 2025, o MME abriu uma Consulta Pública sobre o assunto, em junho passado, que esteve aberta por um mês. A referência para a Consulta foi uma Nota Técnica do ministério que, sob a alegação de que estaria no espírito da lei da privatização de 1995 a renovação das concessões. O próprio texto, porém, foi obrigado a reconhecer que “a prorrogação da concessão é uma opção do Poder Concedente, a ser apreciada sob a ótica do interesse público, não constituindo um direito para os atuais concessionários”.

Apesar da observação, o MME definiu que todas serão renovadas. Lê-se no item 4.7 do documento: “A todas as concessões vincendas será oferecida prorrogação contratual por 30 anos, desde que atendidos os condicionantes”. Segundo Chaves, as “condicionantes” não serão obstáculo para renovação de qualquer das concessões, mesmo nos casos escabrosos de São Paulo, Goiás e outros estados.

Em outras palavras: depois de 30 anos de desastre e sofrimento para o povo brasileiro, 55 milhões de clientes mais suas famílias, o delegado Alexandre Silveira quer renovar o sofrimento e o desastre por mais 30 anos. Choro e ranger de dentes para o povo, alegria e fortuna para os milionários e bilionários donos das empresas, sob os auspícios de Silveira -o presidente Lula será patrocinador da farra?

O desastre da privatização e um novo modelo

A experiência da privatização foi desastrosa, depois de anos das promessas: “o serviço vai melhorar e vai ficar mais barato” -o mantra fake, mãe de todas as privatizações. 

Quanto à qualidade, a sociedade tem em mente o caso da Enel em São Paulo, que chocou o país. Mas, em entrevista ao Fórum Café na última quarta-feira (29), Ikaro Chaves afirmou que “o desastre é nacional, há problemas em todo o canto”. Em Goiás, por exemplo, houve a privatização em 2016 e a mesma Enel ficou com a concessão. “Ela deixou os goianos numa situação desesperadora; faltava luz  todo dia, até pior que em São Paulo. E aí, o que aconteceu? A Enel vendeu a concessão dela para outra empresa, a Equatorial, e o serviço continuou ruim do mesmo jeito”.

Ele foi taxativo na entrevista à TV Fórum: “o modelo do setor elétrico brasileiro, que está falido”.

Quanto aos preços, é um escárnio o que acontece país afora. Entre janeiro e outubro deste ano, devido à inadimplência por conta do exorbitante preço da energia elétrica, já ocorreram cerca de 9 milhões de cortes de energia de consumidores residenciais, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Isso equivale a 11 % da base nacional de consumidores residenciais. Chaves deplorou: “São famílias que ficaram sem energia em casa por não conseguirem pagar a conta de luz. Muitas outras famílias, mesmo em condição de vulnerabilidade, mantiveram a conta em dia, mas precisaram diminuir ou deixar de comprar alimentos básicos”. 

Foi feita a privatização. A experiência deu errado. A população teve prejuízo. E o Estado Nacional retoma o controle da concessão. Simples assim. “Esse modelo deu errado. Deu errado no Brasil, deu errado no mundo inteiro. Então, no mundo inteiro, nós estamos vendo um processo de reestatização do serviço”, ressaltou Chaves.

Bem, e depois de retomadas as concessões, o que fazer para garantir preços menores e qualidade?

Segundo Chaves, será preciso avançar em relação ao modelo de empresas estaduais estatais sem maior controle: “era um modelo com muitos problemas, com muitos casos de corrupção”. Para ele, o ideal seria o governo federal criar uma empresa capaz de articular e gerir o setor, em diálogo com as operações estaduais. “Qual é o problema de se fazer isso? Nenhum. O Brasil já teve isso. O Brasil sabe fazer isso”.  Ele avançou no esboço do novo modelo, que tem inúmeros defensores no setor elétrico: “se o governo federal criar uma empresa federal para assumir as concessões que vão vencer, ela rapidamente se transformará numa empresa de referência”.

Quousque tandem abutere, Silveira, patientia nostra?

A frase imortal de e Cícero, um libelo contra a conspiração do senador romano Lúcio Sérgio Catilina em 63a.C, cai como uma luva para o ministro-delegado de polícia. Até quando?

O próprio presidente Lula advertiu Silveira, em setembro, diante de alguns senadores da região Norte, sobre a excessiva influência no Ministério de Minas e Energia do rei do gás, o empresário baiano Carlos Suarez.

De fato, o Ministério funciona como uma espécie de agência de lobby do rei do gás. Em maio, um parecer do MME foi responsável por inserir um “jabuti” na MP da Mata Atlântica editada pelo próprio governo, escrita sob medida para os interesses de Carlos “rei do gás” Suarez. Ex-dono da empreiteira OAS, o baiano Suarez, unha e carne com outro ministro de Lula, Rui Costa, é dono de gsodutos, distribuidoras de gás e termoelétricas em vários estados e tem enorme poder no Executivo, no Legislativo e Judiciário.

Na MP da Mata Atlântica, conseguiu que fosse prevista a dispensa de estudos prévios de impacto ambiental para a construção de gasodutos nas áreas do bioma, bem como a possibilidade de suprimir a vegetação sem compensações. Diante do escândalo, Lula acabou vetando o “jabuti” na lei aprovada na Câmara conforme o desejo do trio Silveira/Costa/Suareza -numa situação sui generis, em que um presidente vetou trecho de uma MP que ele próprio enviara ao Congresso.

Agora, em articulação com Silveira, Suarez voltou à carga e arrancou mais uma decisão favorável (e contra os interesses do país) da Câmara. Outro “jabuti”: no meio de um projeto de incentivos à geração de energia eólica em alto-mar foi inserida a previsão de benefícios para as usinas termelétricas movidas a gás ou a carvão (o combustível fóssil mais poluente em uso no planeta).

Há mais sobre as relações entre Silveira e Suarez e o amigo do peito Rui Costa. O rei do gás emplacou o secretário executivo do MME (segundo cargo mais importante, depois do ministro), Efrain Pereira da Cruz. Há ali, como é comum nesses casos, uma confluência de interesses. Cruz, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) até 2022, é ligado a ligados a Davi Alcolumbre e ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. 

Ganha um doce quem adivinhar quem foi o grande apoiador do nome de Cruz para a Aneel, em 2018. Fácil: a Abegás, associação de distribuidoras de gás comandada por aliados de Carlos Suarez. Com esse currículo de peso, Efrain Cruz acumula o posto no Ministério com a função de conselheiro da Petrobrás, outro lugar estratégico.

 Há mais, mas fica para outra reportagem/artigo.