ANÁLISE

Wes Anderson e outras histórias - Por Cesar Castanha

Gostaria de focar nos cinco filmes que Anderson lançou este ano, quatro deles adaptações de contos de Roald Dahl

Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

A primeira vez em que fui ao cinema para ver um filme de Wes Anderson foi na ocasião do lançamento duplo do curta-metragem “Hotel Chevalier” e do longa “Viagem a Darjeeling”. Isso ocorreu entre 2007 e 2008, época em que eu já interagia nos fóruns online de cinema e estava ciente da mística em torno da filmografia de Anderson. A discussão crítica em torno do seu filme anterior, “A vida marinha com Steve Zissou”, já foi tomada por uma identificação do que seria entendida como a linguagem fílmica típica do diretor. A reiteração formal aparente ali era tamanha que não demoraria para inspirar sátiras diversas dessa linguagem (enfatizando, por exemplo, a encenação simétrica, o enquadramento frontal e a escolha de cores da direção de arte). Muitas dessas reiterações não estavam visíveis para mim no meu contato inicial com Anderson a partir de “Chevalier” e “Darjeeling” (que acessei como filmes bastante diferentes). É preciso ter visto alguns filmes (ou, ao menos, alguns recortes desses filmes) para que uma piada sobre o maneirismo de Wes Anderson faça algum sentido.

Tendo me interessado mais por esse cinema a partir de “Moonrise Kingdom”, passei a me opor a algumas dessas generalizações postas em torno do cinema de Anderson. Seria uma saída fácil dar de ombros com a maneira como essa identificação de sua linguagem circula e concluir a questão dizendo que se trata do reconhecimento de um autor e de escolhas autorais. É evidente, embora não apenas pelo que é demonstrado nesse tipo de repercussão (uma ressalva necessária para a continuidade desse debate), que a filmografia de Anderson carrega fortes marcas autorais, mas acredito que a brincadeira em torno do cinema de Wes Anderson se dirige menos para o reconhecimento do diretor como autor e mais para compreender as reiterações de seu cinema como resultados de processos de estabelecimento de marca do mercado.

Não nego que há uma função de mercado com que a marca visual de Anderson se envolve (pois é o que também ocorre, invariavelmente, com todos os cineastas mais autorais do cinema estadunidense, resultado da dependência que esse cinema tem do mercado). O que me incomoda é que quando se posiciona a forma audiovisual do cinema de Anderson nesses termos se ignora por um lado como cada um de seus filmes se diferencia bastante do outro pelo envolvimento emocional promovido com o mundo de diferentes personagens, o que se desdobra em diferenças tanto narrativas quanto formais; por outro lado, ignora-se também como há outras reiterações além da plasticidade da simetria e das cores (o que nem sempre se repete ou ao menos não se repete sempre do mesmo modo), como o interesse repetitivo em relações assimétricas de poder dentro de microcosmos específicos (que vão de núcleos familiares até territórios localizados).

Desde “O Grande Hotel Budapeste” (2014), o cinema de Anderson apresenta uma outra reiteração bastante notável que tem afetado cada vez mais as suas escolhas de encenação. Ela pode ser descrita como um interesse dirigido ao próprio ato de contar histórias e aos procedimentos da narração. “Budapeste” em si funciona como uma homenagem a Stefan Zweig, que tem seu trabalho literário adaptado pelo filme. Nesse caso, a relação entre o narrador e a cena narrada é até mesmo convencional. Os flashes que evidenciam o caráter “narrado” da cena são pontuais e não afetam tão radicalmente a forma do filme, o que viria a ocorrer nos casos subsequentes de “A Crônica Francesa” (2021), “Asteroid City” (2023) e o conjunto de curtas-metragens “The wonderful story of Henry Sugar” (2023), “Poison” (2023), “Rat catcher” (2023) e “The swan” (2023).

Na ocasião do lançamento do filme, eu escrevi sobre “A crônica francesa” e seu formato fortemente inspirado pelo de uma revista literária, uma estrutura que o filme tenta traduzir para o audiovisual. Aqui, eu gostaria de focar nos cinco filmes que lançou este ano, quatro deles adaptações de contos de Roald Dahl. O que há em comum nesses filmes é uma nova radicalização de uma encenação da encenação, do uso da linguagem e da cena audiovisual para implicar outras cenas, literárias ou teatrais, o que Anderson faz tanto com o roteiro original de “Asteroid City” quanto com adaptações de Dahl que busca preservar o máximo do texto original como narração, uma narração em primeira pessoa conduzida por personagens em cena.

O jogo de cena escolhido para esse comentário sobre a narração difere em “Asteroid City” e nos curtas. No primeiro, acompanhamos um dramaturgo escrever e uma equipe produzir uma peça a ser apresentada na Broadway. O dispositivo de enquadramento não é tão simples quanto a revelar uma peça dentro de um filme. A peça é um produto audiovisual autônomo, e o enquadramento do fazer da peça (o que inclui ensaios, encontros aos bastidores etc.) parece mais comentar sobre o texto da peça (que recebemos como uma obra audiovisual) do que guardar a sua cena internamente, como um mise en abyme tradicional. As cenas “de fora”, em “Asteroid City”, são cenas que se posicionam em torno da cena “de dentro”, que, apesar de ser a mais ficcional dessas cenas ficcionais, não está simplesmente contida nas outras, como ocorre por exemplo em “A Crônica Francesa”.

O momento em que Margot Robbie interage com Jason Schwartzman em “Asteroid City” é um exemplo interessante disso. Tanto Robbie quanto Schwartzman interpretam atores. Na cena, Schwartzman está na sacada do teatro e encontra Robbie na sacada de um outro teatro. A atriz que Robbie interpreta teria um papel de uma cena na peça “Asteroid City” que foi cortado. Nas sacadas do teatro, os atores interpretam a cena retirada do texto, em que a falecida esposa do protagonista da peça fala ao marido. Assim, a cena, que em sua posição cênica seria uma cena “de fora”, entra na peça de dentro, com a personagem excluída redescoberta em um tipo de aparição que o ator vive tanto quanto o personagem que ele interpreta. Também destaco a teatralidade da cena em si mesma, já que as sacadas são construídas e encenadas como um espaço inerente do teatro, análogo ao palco, algo que está dado pela forma da sacada, que é, enfim, um tipo de palco, como superfície que promove o ser-visto, o que justifica sua aparição iconicamente reiterada como um palco dentro de um palco em peças tão clássicas quanto “Romeu e Julieta” e “Cyrano de Begerac.

Nos curtas-metragens, a organização cênica é outra. Ralph Fiennes interpreta o escritor Roald Dahl enquanto Dahl escreve/narra alguns dos seus próprios contos. Esses contos, no entanto, têm todos narradores em primeira pessoa, o que introduz um segundo (ou terceiro, se contarmos Anderson) contador de histórias a cada curta/conto. O que o personagem-narrador faz, em cada um desses filmes, é se dirigir à câmera e citar (dando a impressão de fazê-lo palavra por palavra) o texto original de Dahl. Dentro do universo ficcional desses filmes essas seriam histórias que os narradores testemunharam e sobre as quais comentam. Há rigor na encenação de Anderson (principalmente no caso de “Henry Sugar” e “Swan”), um controle duro da coreografia da cena para que esta possa acompanhar o ritmo da escrita de Dahl em sua totalidade. Então, momentos de transição cênica acionam gestos particularmente criativos como uma troca de cenários e até de personagens-narradores (o que ocorre algumas vezes em “Henry Sugar”).

Devo dizer que fui também surpreendido com a qualidade e a beleza desses textos menos conhecidos de Dahl. O autor, que é mais reconhecido na cultura pop por adaptações cinematográficas de alguns de seus livros, como “A fantástica fábrica de chocolate”, “Matilda” e “A convenção das bruxas”, tem também reiterações que são particulares a ele. A principal dessas se encontra com algo que aparece frequentemente em Anderson: as diferentes relações de poder que se estabelecem em microcosmos específicos (como famílias e cidades) e que resultam em levantes que se originam dos personagens com menor força, como crianças e ratos, contra os mais poderosos. É possível observar um fundamento político nos trabalhos mais conhecidos de Dahl, mas eu desconhecia o seu trabalho menos vinculado à fantasia, como nos contos adaptados por Anderson, em que esse tipo de confronto entre diferentes posições de poder é posto de modo a desvelar mais explicitamente a estrutura ética presente no seu trabalho literário.

No curta “Poison", por exemplo, um inglês na Índia sob ocupação britânica, deitado estático na sua cama, chama um empregado indiano (o narrador da história) da casa para dizer que há uma cobra repousando sob o lençol em sua barriga, o que mobiliza o narrador a ligar para um médico local, que prontamente elabora uma estratégia para salvar a vida do inglês. Embora nesse curta Anderson não invista o mesmo rigor cênico que empresta a “The swan” e “Henry Sugar”, foi esse o texto de Dahl que me comoveu mais, como uma sofisticada narrativa que revela a desumanização da situação colonial, de que não há resgate heróico ou redenção, resultando apenas em esforços que não encontram sentido.

Enfatizo o trabalho de Dahl porque acredito que ele tem informado os filmes de Anderson e as escolhas feitas pelo diretor para cada uma dessas adaptações. Em “Poison” e principalmente “Rat catcher”, no entanto, o diretor parece dar um passo para trás e oferecer meramente um modelo audiovisual (atravessado por sua assinatura) para o texto de Dahl. É com “Henry Sugar” e “The swan” que ele de fato se apropria dos textos e processa à narrativa do escritor a partir de uma especificidade audiovisual. Nesse sentido, “The swan” foi a meu ver o maior destaque dessa coleção.

No filme, Rupert Friend interpreta um homem que rememora, e nos narra nesse processo, um episódio de sua infância em que foi brutalizado e até mesmo torturado por alguns outros garotos da sua região. Enquanto Friend narra, ele acompanha um ator mais jovem interpretando o personagem no momento em que ocorre o episódio. Friend e seu companheiro de cena se movimentam através de uma cenografia artificial revelando um palco de teatro aparentemente infinito, em que o narrador eventualmente precisa dar orientações cênicas para abrir e fechar passagens. “The swan” envolve o texto impressionante de Dahl sobre resiliência frente à opressão em um relato manifesto a partir da atuação e narração de Friend – e dessa intimidade com que Anderson situa seu narrador em relação ao espectador.

Em “Henry Sugar”, o diretor também trabalha brilhantemente o espaço cênico ao levar para a forma audiovisual a boneca russa narrativa do conto. No curta, cada narrador, a começar pelo próprio Dahl, é envolvido com uma nova fonte (um livro, um diário, um relato) que altera a posição e o ponto de vista do contador da história. Desse modo, Anderson nos traga para um mundo vertiginoso de histórias infinitas. A referência literária mais proeminente para esse tipo de construção narrativa é “As mil e uma noites”, em que as histórias não acabam justamente por conterem em si outras histórias – dado o orientalismo presente no próprio conto de Henry Sugar, é possível que essa citação tenha sido diretamente trabalhada por Dahl. Tanto na materialidade de “As mil e uma noites” quanto na forma narrativa de Henry Sugar, assume-se uma pluralidade de fontes na construção de uma história. O desconhecimento do autor de “As mil e uma noites” denuncia a pluralidade de narrativas orais que constituem o texto; em “Henry Sugar”, por sua vez, há uma anulação formal dessa figura de um único autor pela escalação de diferentes fontes da narrativa. Anderson responde a esse aspecto do texto com maneiras de encenar que se distinguem quanto mais ele se aprofunda nas ficções internas do texto ou volta à superfície do relato que contém todos os outros.

Seria um desperdício, a meu ver, passarmos através dos cinco filmes lançados por Anderson em 2023 sem considerar que nesse conjunto reside uma possibilidade estética do que o diretor oferece para o cinema contemporâneo que vai além do reconhecimento de seu maneirismo mainstream. Nesses filmes, Anderson se permite envolver com um gesto de narrar no cinema que não é autônomo nem independente do cinema, que é cortado por outras formas narrativas enquanto produz uma tessitura audiovisual própria. Em um momento que se disputa o que o cinema pode ser (do streaming aos microfilmes no TikTok), gosto de ver um diretor como Anderson participar dessa disputa ao interagir sua enceção tão radicalmente com a da literatura e do teatro.

O longa-metragem “Asteroid City” está disponível para aluguel em diversas plataformas digitais. Os curtas-metragens “The wonderful story of Henry Sugar”, “The swan”, “Poison” e “Rat catcher” estão disponíveis na Netflix.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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