Nos estertores da Guerra Civil Espanhola, dezenas de milhares de militantes de esquerda, democratas ou simplesmente republicanos, cruzaram os Pirineus para buscar refúgio em França, durante o gélido inverno de 1938-39.
Dentre os expatriados estava o poeta Antonio Machado, que ao chegar no pequeno hotel onde viria a morrer escreveu uma breve síntese sobre o sangrento embate entre a 2ª República espanhola e o fascismo:
“... nunca aprendemos a fazer a guerra... Para os políticos, para os historiadores tudo está claro: perdemos a guerra. Mas humanamente não estou tão certo. Talvez a tenhamos ganhado.”
Machado não construía uma ilusão otimista, mas sim uma transferência de foco para a única frente mais importante do que a situação militar: o confronto ideológico.
A 2ª República espalhou pelo solo ibérico e aos quatro ventos do globo, sementes daquilo que é a razão de ser da esquerda e ao mesmo tempo a arma fatal contra o fascismo: a igualdade.
Foi por se afastar da igualdade e tratar do Estado como se fosse uma empresa capitalista (“ajuste fiscal”, “déficit zero”, “previdência equilibrada”) que a esquerda perdeu espaço para o primo dire(i)to do fascismo, o neoliberalismo.
E é em razão da hegemonia ideológica do fascismo e do neoliberalismo em nossa adoecida sociedade que se pode utilizar às avessas o dito de Antonio Machado: Bolsonaro, assim como Aécio em 14, perdeu a eleição para presidente de 22, mas ganhou a guerra. Sobretudo em termos de “desumanidade”.
Cada vez que um gestor público reproduz ou cede a um imperativo neoliberal, se reafirma a vitória de Bolsonaro. A todo instante em que o Estado pratica o fascismo e mata pobres para proteger os ricos, o monstro se consolida.
São concessões às dominantes ideologias irmãs, 24h por dia apregoadas pela mídia hegemônica sem o contraponto de uma política de comunicação de massas, por parte do governo. É uma disputa perdida por “W.O.”
Nessa toada, o fato midiaticamente fabricado de que a segurança pública será o tema decisivo das eleições municipais de 24 chega a ser “natural”, assim como naturalizada é a superexploração “terceirizada”, “quarteirizada” e “uberizada”, diligentemente protegida pelo judiciário.
Não sejamos injustos com as castas burocráticas. O judiciário julga não só para os ricos, como sobretudo para si mesmo, assim como as polícias estaduais e os bombeiros são “militares” sem outra justificativa que não seja o próprio interesse.
Ignorar o quanto o fascismo está presente e determina os rumos de nossa sociedade é uma perigosa forma de negacionismo, que atinge o status de crime contra a democracia quando se faz vista grossa à doutrinação fascista ministrada nas academias militares.
Enquanto isso, a cosmopolita elite brazuca se regozija por estar “alinhada” ao pensamento da elite mundial, sendo mais neoliberal ou mais fascista, conforme o interesse de momento. Via de regra, suas análises de conjuntura são mais precisas do que as da esquerda, contente com momentâneos resultados eleitorais e ignorante da verdadeira disputa.
Não seria preciso assistir ao holocausto palestino, onde agora são genocidas e fascistas as antigas vítimas do genocídio fascista, para perceber que a verdadeira disputa se dá com a prática e a ideologia fascistas, independentemente do praticante, de seu partido político ou das cores de sua bandeira.
E, por descuidar da verdadeira disputa, perde-se até o resultado eleitoral. Vide a mil vezes chorosa Argentina.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.