GENOCÍDIO PODE SER CONTIDO?

Vietnã e Argélia mostraram: é possível vencer. A Palestina pode mudar o curso da história - por Mauro Lopes

Os palestinos são os vietnamitas, argelinos e afegãos do presente. Os três povos derrotaram as ocupações coloniais. A invasão israelense colhe derrotas, milhões saem às ruas no mundo e os governos começam a se mexer. E o Brasil, como fica?

Manifestação da torcida do Celtic, em Glasgow, Escócia.Créditos: Reprodução
Escrito en OPINIÃO el

Não há vitórias de véspera em nada na vida. Nem nas guerras. No papel, nas planilhas, a força militar israelense é imbatível, ainda mais com os EUA na retaguarda. Do ponto de vista político, parece ter uma situação estável, com a submissão (é a palavra correta) do governo Biden e o apoio da União Europeia, além de desfrutar de um momento raro de penetração diplomática no mundo árabe.

Portanto, tudo indicaria uma vitória tranquila e o massacre dos palestinos sem maiores problemas, um genocídio sob os olhos da comunidade internacional. Os sionistas vibram com a perspectiva, da mesma forma como vibraram desde sempre as forças coloniais que buscavam dobrar povos indômitos.

Os Estados Unidos imaginavam que colocariam o Vietnã de joelhos; a época era outra, mas a contabilidade da força militar envolvida de lado a lado talvez não fosse tão diferente assim. Foram humilhados e expulsos do país, depois de terem sido humilhados os franceses.

A França, que já fora escorraçada do Vietnã em 1954, foi derrotada pelos argelinos em 1962. Mais uma vez, no papel, a vitória francesa parecia certa.

Aproximemo-nos no tempo. Os afegãos colocaram para correr nada menos que as duas grandes potências mundiais da segunda metade do século 20 que se meteram num delírio colonial contra um povo que consideravam feudal: a União Soviética, na luta entre 1979 e 1989 e, depois, não apenas os EUA, mas a OTAN, na guerra de guerrilhas entre 2001 e 2021.

Sim, há vitórias coloniais, como aconteceu no Iraque e Líbia. 

Mas o projetado passeio sionista na Faixa de Gaza e em toda Palestina pode se transformar num atoleiro.

Os palestinos são os vietnamitas, argelinos e afegãos do presente. 

Enfrentam uma luta que pode liquidar seu povo. Mas resistem e têm acertado golpes doloridos nos genocidas sionistas.

Do ponto de vista político, a aliança Israel-OTAN parece que não será suficiente para conter e intimidar os países do mundo. As ações diplomáticas começam: a Bolívia rompeu relações com Israel, a Colômbia, o Chile e a Jordânia nesta quarta (1) convocaram seus embaixadores. O Iêmen iniciou ataques a Israel. Os países árabes aumentam a cada dia o tom de voz contra os israelenses. Erdogan está usando uma metralhadora verbal contra Israel, tem defendido abertamente o Hamas e os palestinos e articula-se também abertamente com o Irã.

O Irã, por sinal, é peça-chave na equação. Israel e EUA tentam intimidar o país que simboliza a resistência ao sionismo no Oriente Médio. Mas os líderes iranianos não estão escondidos debaixo da cama. Confrontam Israel na ONU, recebem os líderes do Hamas, do Hezbollah e dos Houthis do Iêmen, que desde a quarta (31) passaram a lançar mísseis contra o território sionista. E, nesta quarta, dialogaram com o presidente e a cúpula turca.

Depois de uma passagem inócua do Brasil pela presidência do Conselho de Segurança da ONU, a China assumiu a cadeira rotativa (e nela ficará até o fim do mês) com uma postura assertiva e ofensiva contra Israel.

Veja Wang Wenbin, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, que assumiu uma postura bem diferente daquela anódina do governo brasileiro: «A causa principal do conflito recorrente entre a Palestina e Israel é o fato de o território palestino ter sido ocupado ilegalmente durante muito tempo. Esta injustiça histórica não deve continuar». A declaração está a quilômetros de distância das declarações brasileiras. Veja:

Por sinal, o Global Times, jornal que expressa a posição da direção chinesa, publicou também neste dia de estreia do país à frente do Conselho de Segurança, uma reportagem que não poupou assertividade: 

“A pressão internacional para obrigar Israel a pôr termo às punições coletivas na Faixa de Gaza tem aumentado, com o número de mortos nesta altura do conflito ultrapassando os 10.000. Após a decisão da Bolívia de suspender os laços com Israel, analistas disseram que outras nações agiriam para aplicar pressão diplomática sobre Israel e os EUA para permitir uma trégua. 

Numa conferência de imprensa na terça-feira, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Bolívia, Freddy Mamani Machaca, afirmou que a sua nação ‘decidiu romper relações diplomáticas com o Estado israelita em repúdio e condenação da agressiva e desproporcional ofensiva militar israelita que ocorre na Faixa de Gaza’. De acordo com relatos da mídia, dois outros países sul-americanos, Colômbia e Chile, chamaram de volta seus embaixadores em Israel” - veja o texto integral aqui (está em inglês, mas você pode usar um tradutor disponível na internet com facilidade).

A disputa pela opinião pública e pelas ruas

Israel e os EUA estão saindo-se mal na esfera da opinião pública e fragorosamente derrotados nas ruas ao redor do planeta. Nem mesmo a frente unida das mídias liberal, sionista e de extrema direita está contendo a indignação -apesar de toda a censura, especialmente logo após o 7 de outubro. As frestas vão se abrindo -como o demonstrou a entrevista do porta-voz das Forças Armadas de Israel à CNN na qual, de maneira cínica,admitiu o massacre do campo de refugiados de Jabalia (mais de 50 mortes). O coronel sionista Richard Hecth resumiu, num quase sorriso.: “Esta é a tragédia das guerras. Nós dissemos para eles se mudarem para o sul…”. Wolf Blitzer arregalou os olhos, incrédulo, espantado. Veja:

Milhões de pessoas estão saindo às ruas semana após semana em boa parte do planeta. A mobilização nos EUA, em dezenas de cidades, é impressionante, e as pesquisas já indicam perda de apoio a Biden. A guerra pode levá-lo à derrota nas eleições daqui a um ano. Veja:

Há uma mídia alternativa, guerrilheira e, em alguns países, semiclandestina, que dá suporte aos palestinos e espalha em tempo real centenas de vídeos com cenas das vítimas, especialmente crianças, por vastas regiões da Terra.

Israel, os EUA e a OTAN estão perdendo a guerra pelos corações e mentes, como perderam no Vietnã, na Argélia e no Afeganistão. 

A frente de batalha 

A pujança das forças armadas de Israel é um fato reconhecido mundialmente. No entanto, elas não estão tomando Gaza com facilidade. Ao contrário. 

Começam a circular vídeos de ataques bem sucedidos em Gaza contra o Exército invasor. São cenas impressionantes que, também, circulam globalmente.

Veja algumas delas:

 

 

Menos de uma semana depois da invasão, os vídeos com os caixões de soldados israelenses inundam Israel e os Estados Unidos. Conta-se em 16 os número de soldados mortos em combates nesses primeiros dias e as imagens são devastadoras para a opinião pública israelense. ocupando as manchetes dos dois principais jornais do país, o Jerusalem Post e o Haaretz. Veja:


 

Um campo de batalha é sempre a soma dele mesmo e as informações que chegam à opinião pública. Se as imagens palestinas de tanques e militares israelenses mortos e presos começarem a se espalhar em larga escala e as cenas de caixões com soldados israelenses ocuparem diariamente a mídia sionista e estadunidense, então a ofensiva dos invasores pode ter reveses inesperados. 

A posição brasileira

Sob a alegação de que estava na Presidência do Conselho de Segurança da ONU quando houve a ação de Gaza em 7 de outubro, o governo Lula passou o mês com uma postura que foi considerada por alguns analistas como “prudente”. Condenou a ação do Hamas, que qualificou de “terrorista”, evitou qualquer condenação a Israel -nem mesmo a palavra “Israel” constou dos comunicados e discursos neste período- e limitou-se a lamentar a morte de crianças sem, em qualquer momento, o presidente da República ou seu governo terem identificado as crianças como palestinas. Mais: defendeu a libertação dos 200 reféns nas mãos do governo de Gaza, mas recusou-se a colocar na mesa a questão da libertação dos mais de 6 mil reféns palestinos nas prisões israelenses. 

A justificativa pragmática para a postura -basicamente, evitar qualquer atrito com os EUA e Israel- não alcançou o objetivo pretendido pelo governo Lula: encerrar seu tempo na presidência do Conselho de Segurança com uma decisão retumbante. Seria o troféu pretendido para tentar lançar o país no cenário internacional. Não deu certo. 

Enquanto isso, a comunidade mais fulcral a que pertence o Brasil, a América Latina, mexeu-se de maneira assertiva. Bolívia rompeu relações com Israel, Chile e Colômbia mandaram seus embaixadores a deixaram de Telavive. O Brasil, maior país da região, e que se apresenta como líder latino-americano, vai ficando para trás.

Depois da justificativa da presidência do Conselho de Segurança ter perdido validade, a narrativa para a passividade do governo brasileiro é a presença dos 34 prisioneiros em Gaza. “Lula não pode falar nada senão Israel não deixa os brasileiros saírem”.

A ilusão de que Israel e EUA seriam permeáveis a uma resolução brasileira no Conselho de Segurança se o país ficasse quietinho, “neutro”, mostrou-se bolha de sabão.

O Estado israelense desconhece a linguagem diplomática. Só conhece a força. A aposta de que a vida dos brasileiros estará mais segura e saída de Gaza mais próxima se o Brasil apequenar-se é arriscada. 

Bolívia, Chile, Colômbia saíram na frente -quando o Brasil deveria ter saído. O maior país da região vai ficando para trás e abandonando seu histórico apoio ao povo da Palestina.

Há tempo de o Brasil reencontrar-se com seu passado, com o polo mais dinâmico e progressista da América Latina e com o povo palestino.