No século passado, Antonio Gramsci, notório marxista italiano, utilizou o termo “especialistas em legitimação” para descrever os intelectuais responsáveis por corroborar, no campo das ideias, o status quo vigente. Desse modo, ao longo dos anos, todos os tipos de desigualdades, preconceitos e atrocidades foram “racionalmente explicadas” por pensadores de diferentes áreas do conhecimento.
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Atualmente, no Brasil, os “especialistas em legitimação” podem ser encontrados, sobretudo, nos noticiários da grande imprensa (e, ao contrário do que dizia Gramsci, já não são tão “intelectuais” assim). Comumente, são chamados “articulistas” e, em casos mais ousados, “formadores de opinião”.
Diferentemente de seus congêneres estadunidenses, que não se furtam em demonstrar seus direcionamentos ideológicos, os principais grupos de comunicação do Brasil vendem uma imagem de veículos neutros, apartidários e comprometidos apenas com a objetividade dos fatos (embora, sem exceção, estejam à direita no espectro político).
Nesse sentido, os “especialistas em legitimação” cumprem a estratégica função de repetir os posicionamentos das empresas para as quais trabalham, sob a cortina de fumaça do “jornalismo de opinião”.
Evidentemente, o Grupo Globo não pode explicitar em seus noticiários que atende aos interesses das principais potências (especialmente os Estados Unidos), o que significaria demonstrar abertamente repúdio a mandatários, países, civilizações e povos que ofereçam o mínimo obstáculo para a dominação imperialista. Portanto, esta função é designada para articulistas como Arnaldo Jabor
Não por acaso, em seus editoriais, no Jornal da Globo e na Rádio CBN, o falecido cronista já rotulou o islã como “religião autoritária” e se referiu a nossos vizinhos sul-americanos como “a Bolívia cocalera de Morales e a Argentina de Cristina botox”.
Seguindo essa linha, Jorge Pontual, comentarista internacional da GloboNews, chegou a defender a continuidade do massacre de Israel na Faixa de Gaza, pois, segundo ele, “reconhecer o direito de Israel de se defender é reconhecer o direito de Israel de atacar o Hamas, de eliminar o Hamas [...]. Não há negociação possível. A única saída, agora, é militar. Um cessar fogo agora seria um erro”.
Mas nem todo “especialista em legitimação” possui discurso raivoso. Alguns, como Guga Chacra, corroboram os posicionamentos de seus patrões de uma forma mais branda, a fim de atrair a parcela “moderada” do público.
Enquanto Pontual fala abertamente em favor do genocídio palestino, Chacra, em comentário também na GloboNews, buscou comover a audiência sobre a “humanidade” das vítimas israelenses do Hamas, “gente como a gente”, o que dá a entender que os palestinos não possuem a mesma “humanidade”; portanto podem ser exterminados.
Aliás, por ser descendente de libaneses, Guga Chacra supostamente teria “lugar de fala” para dissertar sobre a geopolítica do Oriente Médio, o que nada mais é do que um recurso discursivo para esconder seu apoio a beligerância sionista (como, é claro, devem fazer todos os seus colegas de emissora).
Além dos “especialistas em legitimação” habituais, há aqueles “especialistas em legitimação” convidados para falar sobre um determinado assunto. Em geral, são professores ou pesquisadores universitários que não necessitam ter precisamente o reconhecimento de seus pares, dominar uma temática qualquer ou possuir uma obra acadêmica contundente e profícua. Basta concordar fidedignamente com os conteúdos ideológicos difundidos pelos noticiários da grande mídia.
Inclusive, os chavões, maniqueísmos e lugares-comuns devem ser os mesmos: “Hamas terrorista”, “Israel, única democracia do Oriente Médio”, “a comunidade internacional condena o programa nuclear iraniano”, “Coreia do Norte, país mais fechado do mundo” e por aí vai.
Desse modo, em troca de visibilidade midiática, ou mesmo pura vaidade, indivíduos que teoricamente deveriam contribuir para a difusão do conhecimento crítico, transformam-se em meras correias de transmissão para o que há de mais nefasto e conservador no pensamento brasileiro.
Por outro lado, há acadêmicos que não se deixaram intimidar pelos holofotes e desmascararam os discursos midiáticos em plena GloboNews. Via de regra, protagonizaram momentos épicos.
No programa “Entre Aspas”, Igor Fuser, professor da UFABC, questionou a âncora Mônica Waldvogel sobre a prática dos noticiários do Grupo Globo (e da mídia hegemônica em geral) em somente apresentar visões negativas sobre a Venezuela e não dar voz ao contraditório. Já o historiador Rodrigo Ianhez, estudioso do período soviético, apresentou a posição russa sobre o conflito com a vizinha Ucrânia (sem necessariamente defender o presidente Vladimir Putin), destoando, por consequência, da narrativa hegemônica na mídia ocidental. Foi o suficiente para o anteriormente citado Jorna Pontual dar chilique no ar. Poucas semanas atrás, a então doutoranda em Relações Internacionais, Isabela Agostinelli, desmentiu no “Edição das 17h” a fake news sobre o exército israelense não atacar alvos civis em Gaza.
No entanto, lembrando o princípio legal da República Romana “exceptio probat regulam in casibus non exceptis”, estes exemplos são exceções e não a regra. Como os acadêmicos mencionados acima não se prestaram ao papel de “especialistas em legitimação”, é fácil inferir que não receberam mais convites para participações em programas da GloboNews.
Há algum tempo, Noam Chomsky ouviu de vários jornalistas de grandes veículos estadunidenses que eles jamais registraram qualquer tipo de censura em seus locais de trabalho. Poderiam publicar o que bem entendessem.
Logo, o famoso linguista e ativista social concluiu que a “censura” aos profissionais de comunicação não é realizada na redação, mas na contratação. Somente vai integrar uma equipe editorial o indivíduo que já esteja alinhado à uma determinada ideologia.
O mesmo ocorre aqui no Brasil. Para trabalhar nos maiores grupos de comunicação do país não é preciso ser especialista em “jornalismo internacional”, “jornalismo investigativo”, “edição” ou “fotojornalismo”. Basta ser “especialista em legitimação”. Simples assim.