Há enredos que transcenderam as barreiras do tempo e continuam a ecoar mensagens, e um exemplo disso é o enredo de Fahrenheit 451 (2018) - disponível na HBOMax e no Prime. O filme é uma adaptação cinematográfica de Ramin Bahrani (O Tigre Branco, 99 Casas) do clássico romance homônimo de Ray Bradbury, lançado em 1953.
Enquanto mergulhamos nessa história envolvente, é impossível ignorar as assustadoras semelhanças com nossa própria sociedade, que enfrenta ameaças de desinformação e fake news - e não só nas redes sociais.
Enredo e personagens
O filme se passa em um futuro distópico, não muito distante, onde o governo promove a queima sistemática de todas as obras literárias - para o "bem" da população. Os bombeiros - que têm a função de queimar livros e caçar rebeldes - são na verdade uma força policial de repressão, da qual fazem parte Guy Montag - interpretado por Michael B. Jordan (Pantera Negra, Creed II) e seu mentor Capitão Beatty - interpretado por Michael Shannon (Trem-bala, A Forma da Água). Montag, inicialmente um fiel executor das ordens de Beatty, começa a questionar o sistema ao conhecer Clarisse McClellan - interpretada por Sofia Boutella (Atômica, Hotel Artemis), uma jovem rebelde que o leva a explorar a importância da leitura e do conhecimento.
O filme desenrola-se em um mundo onde a população é mantida sob controle através do uso de telas de TV gigantes, em todos os lugares, que transmitem programas superficiais 24 horas por dia - não muito diferente do que acontece atualmente - mantendo as mentes da população ocupadas, mas desprovidas de pensamento crítico. Toda a população é ouvida, vista e assistida (na verdade vigiada) por um sistema de inteligência artificial, de nome Yuxie - bem Orwelliano, né?! No entanto, à medida que Montag se aprofunda em seu questionamento e na leitura de livros proibidos, ele se vê confrontado com as ramificações devastadoras desse governo autoritário e seu controle sobre a informação - ele adquire pensamento crítico e começa a questionar seu trabalho e as regras autoritárias e draconianas do governo.
A jornada de Montag ilustra como o conhecimento e a exposição a ideias e culturas diversas podem abrir os olhos das pessoas para as injustiças e os perigos do conformismo. Isso ressalta o poder da literatura e da educação como agentes de transformação social e pessoal, algo que pode inspirar os leitores a refletir sobre seu próprio papel na promoção da liberdade e da verdade.
Contexto histórico
O livro Fahrenheit 451 já foi adaptado para o cinema em 1966, pelo cineasta François Truffaut (Os Incompreendidos, A Noite Americana), e era uma crítica óbvia ao nazismo. Era um período de crescente preocupação com a censura e a repressão intelectual durante a Guerra Fria. Os temores sobre a limitação da liberdade de expressão e o controle da informação estavam muito presentes na mente das pessoas naquela época.
Já o filme de 2018 reflete o contexto no qual o livro foi escrito, mas com adaptações contemporâneas - como inteligência artificial, redes sociais, óculos de realidade virtual, entre outros detalhes. Isso não agradou os fãs do livro, que também se queixaram da falta de alguns personagens, e do filme não ter trabalhado bem o arco dos personagens principais - e por isso chamamos de adaptação para o cinema, ao invés de cópia fidedigna.
Ray Bradbury sempre expressou seu amor pela leitura e sua preocupação com o declínio da literatura na sociedade. Ele viu a leitura como uma fonte de enriquecimento intelectual e uma ferramenta essencial para a preservação da democracia e da cultura. Essa paixão pela leitura e sua luta pela liberdade intelectual influenciaram fortemente a criação do livro.
O título Fahrenheit 451 representa a temperatura na qual o papel queima - 451° Fahrenheit ou 233° Celsius; e também simboliza a ideia de que a sociedade está "em chamas", mergulhada em caos e destruição devido à censura e à repressão intelectual.
Desvendando os múltiplos estratos da humanidade
Somos conduzidos a uma exploração profunda e multifacetada das implicações filosóficas e sociológicas, bem como aspectos antropológicos da sociedade distópica retratada.
No nível filosófico, o filme aborda questões relacionadas à natureza da verdade e da realidade. A supressão da leitura e da busca pelo conhecimento leva à criação de uma realidade distorcida. Nesse contexto, as ideias do filósofo Jean Baudrillard sobre a "simulação" tornam-se relevantes. Baudrillard argumenta que, em uma sociedade saturada de imagens e informações, a realidade é substituída pela simulação, e as pessoas aceitam a ilusão como verdade - até parece que ele previu as redes sociais!
Além disso, a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre pode ser relacionada à transformação de Guy Montag, que passa de um executor do sistema para um questionador da realidade. Sartre argumenta que somos responsáveis por nossas escolhas e que a busca por sentido é fundamental para a existência humana.
O que acontece quando a sociedade abandona a leitura e a busca pelo conhecimento em troca de distrações fáceis? A perda da habilidade de pensar criticamente e questionar autoridades é uma consequência inevitável. Afinal, a leitura - de bons livros - é fonte de questionamento e reflexão. Sem ela, as massas se tornam mais suscetíveis à manipulação e ao controle.
Do ponto de vista sociológico, o filme apresenta uma análise profunda da alienação e isolamento social. O uso excessivo de telas, e a falta de interações humanas reais contribuem para uma sociedade desprovida de empatia e conexões significativas. Essa representação de uma sociedade alienada reflete muitos dos problemas enfrentados pelo mundo atual, onde as redes sociais frequentemente substituem o contato humano real e contribuem para a polarização e o isolamento. A alienação social e a falta de conexões genuínas refletem as preocupações de Zygmunt Bauman em relação à fluidez e à superficialidade das relações humanas na sociedade contemporânea.
No campo da antropologia, o filme aborda o papel fundamental da narrativa e do mito na construção da cultura. A proibição da leitura e dos livros resulta em uma perda da memória cultural e da herança intelectual. Isso evoca as teorias do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que argumentava que os mitos eram essenciais para a compreensão da cultura e da identidade de um grupo social.
Portanto, Fahrenheit 451 vai além de uma narrativa de ficção científica e oferece ricas camadas de temas filosóficos, sociológicos e antropológicos que nos convidam a refletir sobre a natureza da sociedade, da verdade e da liberdade.
Fake news e desinformação
Ao analisar Fahrenheit 451 em relação aos desafios contemporâneos, é impossível ignorar a crescente ameaça das fake news e da desinformação nas redes sociais. A mensagem subjacente do filme se estende à importância da informação verídica e da liberdade de expressão.
Nossa sociedade moderna enfrenta um dilema semelhante ao da trama do filme - felizmente o Brasil já está atento a esse problema e a PL 2630 (a PL das fake news) já está em trâmite no Congresso. As redes sociais são poderosas ferramentas de comunicação, mas também se tornaram espaços onde informações falsas e enganosas se espalham rapidamente. A polarização política e a desconfiança - ou demasiada crença - nas fontes de informações são consequências diretas dessa disseminação desenfreada de fake news.
Assim como no mundo de Fahrenheit 451, a desinformação pode - e é - usada como uma arma para controlar a narrativa e manipular a opinião pública. Em um contexto onde a verdade se torna incerta, a população se torna mais vulnerável à influência de autoridades e de qualquer pessoa com uma plataforma para espalhar teorias de conspiração - entre outros absurdos. A mensagem que o filme transmite sobre o valor da verdade e da informação autêntica é, portanto, mais relevante que nunca.
Em nossa era de informação rápida e rasa, a leitura nos faz desenvolver senso crítico e interpretação de texto - que está em falta nas redes sociais. Ela nos dá as ferramentas para formar nossas próprias opiniões e não sermos simplesmente moldados pela narrativa imposta.
O contexto atual de disseminação de fake news e desinformação nos lembra da responsabilidade de sermos conscientes do poder dessas informações enganosas. Verificar fontes e não compartilhar informações não verificadas é fundamental para combater a desinformação e manter a integridade da informação - nunca se esqueça disso.
A mensagem é um apelo
Fahrenheit 451 nos lembra que a batalha pelo conhecimento e pela verdade é atemporal. Em um mundo onde o autoritarismo e a desinformação continuam a ser ameaças, a mensagem do filme se torna ainda mais relevante. Através da literatura e do cinema, somos lembrados da importância de proteger nossa liberdade, promover o pensamento crítico e valorizar o conhecimento como uma ferramenta de resistência.
À medida que navegamos em um mar de informações digitais, devemos lembrar que o poder do conhecimento é uma força formidável - mas também perigosa, dependendo da forma como for usada. O filme nos desafia a defender a verdade e a buscar a sabedoria, a fim de manter viva a chama da liberdade em um mundo cada vez mais complexo e desafiador.
Assim como Guy Montag desafiou o sistema, temos a responsabilidade de questionar, resistir e preservar o direito de buscar a verdade. O conhecimento é poder, e a leitura é uma ferramenta que nos permite manter viva a chama da liberdade através do questionamento. Cultive o hábito da leitura, leia livros, e questione o 'status quo'.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum