Por Yuri Martins-Fontes, Solange Struwka e Paulo Alves Junior**
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Conforme exposto na primeira parte deste artigo, analisa-se aqui as raízes históricas que fazem perdurar a miséria e o abismo social na América Latina. Para tanto, vejamos certas características das elites de nossas nações – que desempenham entre nós um papel “antinacional”, colocando-se desde sempre contra os processos populares por maior autonomia e superação da pobreza.
As burguesias internas antinacionais da América Latina
De uma perspectiva vinculada à práxis revolucionária, além do problema do imperialismo, outra questão fundamental aos povos da América é a necessidade de se compreender objetivamente a ação política limitante operada pelas “burguesias internas” latino-americanas – classe dominante que nunca foi “nacional”, como pensaram sobretudo na primeira metade do século XX certos teóricos críticos, mas sempre aliadas subalternas das burguesias dos países centrais do capitalismo. Classes, portanto, “antinacionais”.
Considerando que o processo de emancipação política está na origem da nação, o rescaldo deste movimento implica nas particularidades sócio-históricas dos setores que compõem as classes sociais por aqui gestadas. O problema, que envolve diretamente a questão nacional, vincula-se com temas recorrentes e fundamentais da tradição marxista, tais como: as formas e relações sociais que se organizam em nossos países, a sociedade e o Estado (IANNI, 1995).
A reflexão sobre a “questão nacional” remonta ao século XIX, momento em que na Europa há intenso debate acerca do significado de “nação”. Neste período, “nações” como Sérvia, Irlanda e Tchéquia – povos de etnia e língua própria – estavam sob ocupação das potências imperialistas da época (HOBSBAWM, 1991). Ganha força então a concepção de que a “nação” seria caracterizada pela “unidade” étnico-linguística; e, portanto, cada uma dessas unidades deveria ser reunida politicamente em um único Estado.
Essa problemática, tematizada no âmbito do comunismo internacional por Lênin e Rosa Luxemburgo, impõe a necessidade de não só recuperar a própria consolidação de instituições políticas que levam à direção e organização do Estado, mas também, de tratar aspectos que explicitam a ordem desigual e opressora dominada pelas nações imperialistas.
Para exemplificar como a questão nacional foi tema decisivo para o contexto que antecede a “Revolução de Outubro”, Rosa Luxemburgo chama a atenção para o programa do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) e suas legítimas inquietações sobre a temática. No programa do POSDR, a líder dos espartaquistas mostrava o quão importante era a supressão dos Estados e a completa igualdade de direitos para todos os cidadãos, sem diferença de “sexo, religião, raça, ou nacionalidade” e ainda, proclamava as premissas de que a “população da nação deve ter o direito de frequentar escolas gratuitas e autônomas que ensinem o idioma nacional”, e “utilizar sua língua nas assembleias, como também em todas as repartições estatais e públicas” (LUXEMBURGO, 1988).
Entre os expoentes dos partidos comunistas na Alemanha e Rússia, é Lênin quem demonstra, para além da luta de classes dentro e fora dos territórios nacionais, a existência da luta entre as “nações opressoras” e as “nações oprimidas”, a qual também deve ser estudada no horizonte classista da correlação de forças e das condições sociais, políticas e econômicas que definem as estruturas de determinada classe social. Na tentativa de defender o posicionamento dos comunistas em relação às lutas nacionais de enfrentamento ao imperialismo, o intelectual e líder bolchevique reconhece que “até agora, a nossa experiência comum sobre este assunto não é muito grande, mas pouco a pouco reuniremos uma documentação cada vez mais abundante” – identificando a questão nacional como elemento decisivo para a consolidação “das necessidades revolucionárias” (LÊNIN, 1971).
Esta discussão impunha, desde o século XIX, grandes debates e divergências dentro do movimento socialista: a própria Rosa Luxemburgo discordava de Lênin, devido à ideia das “origens burguesas da polêmica nacional” (LUXEMBURGO, 1988). Mais tarde, a questão foi incorporada aos debates sobre o programa do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Lênin, como um dos dirigentes do partido, sempre teve o tema na ordem do dia. Suas assertivas a respeito indicavam que na Rússia não seria possível fazer triunfar a revolução socialista sem que fosse dada uma atenção especial à questão nacional: pois o ideário de Estado do nacional-liberalismo pretende salvaguardar “os privilégios estatais da burguesia grã-russa” (LÊNIN, 1986).
A polêmica com Rosa Luxemburgo deriva da compreensão de Lênin de que a revolucionária alemã não percebera o quanto a questão nacional é fundamental para a autonomia das nações – e, por conseguinte, sua importância para o projeto revolucionário. Para Rosa, a defesa feita por Lênin da questão nacional resultaria na reestruturação do Estado nacional burguês. Contudo, é importante aqui ressaltar que tal avaliação não corresponde às assertivas de Lênin, para quem a autodeterminação das nações deve ser uma das reivindicações do programa do partido revolucionário, que assim como tantas outras só poderá ser completamente implementada quando for vitoriosa a revolução socialista.
Nota-se que o esforço de Lênin vai na direção de elaborar algumas teses sobre a questão nacional, sem tirar do horizonte o “assalto ao céu”, como finalidade central dentro da ordem do capital e consequente luta de classes enfrentada pelo POSDR. O traço particular deslindado é entender que a luta de classes ocorre dentro de um “terreno nacional”, adquirindo um “caráter internacional”. A luta da classe operária contra a exploração exige uma firme solidariedade e estreita unidade dos operários de todas as nações, da mesma forma que a resistência à política “nacionalista burguesa” independe de sua nacionalidade. Deste modo, o caráter classista da questão nacional precisa ser compreendido para que não gere ilusões e confusões no meio da classe trabalhadora, evitando assim, como bem ressalta Lênin: “dividir para regozijo da burguesia”; “a negação do direito à autodeterminação significará, na prática, o apoio aos privilégios da nação dominante” (LÊNIN, 1986).
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Quando observamos o caso da América, logo se percebe que esta noção de “nação”, ao contrário dos europeus e mesmo dos asiáticos, não se adéqua a nossos povos. Não cabe pensar nossas nações mestiças predominantemente em termos étnicos, e muito menos linguísticos (dadas nossas línguas impostas pelas metrópoles). Estes formatos pré-fabricados de interpretação que nos chegavam (e chegam) desde a realidade europeia, perturbaram a autenticidade de muitas análises da tradição crítica, sobretudo até meados do século XX.
Para adentrar nesse debate, é preciso antes perceber – como o mostra Caio Prado (2000) – que nossos países foram constituídos a partir da expansão mercantil das fronteiras europeias. Esta condição nos situa na “periferia” do capitalismo, este sistema cuja consolidação se fundaria não só nas riquezas materiais, mas ainda nos saberes originários americanos (CASTRO, 1951).
Tais discussões foram centrais nesses tempos de formação de uma autêntica reflexão sobre as realidades nacionais, levando a uma problemática polarização: em um dos extremos, os marxistas de concepção mecanicista ou dogmática, que tentaram enquadrar artificialmente nossas realidades no modelo europeu (tido então como sendo “universal”); de outro lado, os intelectuais progressistas, por vezes próximos ao marxismo, mas excessivamente relativistas, que se desviam da tradição crítica totalizante ao exagerarem as supostas “especificidades regionais” de seus povos (LÖWY, 2006).
Dessas duas concepções falhas, adviriam erros de interpretação histórica que desaguariam em equívocos políticos graves. No campo das ideias revisionistas, sobressai o pensamento nacionalista-eclético de Haya de la Torre – da Aliança Popular Revolucionária Americana –, que defende que o marxismo seria um pensamento “europeu”, nascido de sociedades forâneas, e que portanto não serviria às análises da América. Trata-se de um posicionamento oriundo da pequeno-burguesia, e que resultaria em uma espécie de indigenismo “filantropo” (MARTINS-FONTES, 2018).
Haya visitou a URSS e foi admirador de Lênin, mas não do Lênin total – intelectual e homem de ação –, mas antes do grande líder que mobilizava multidões. Além disso, absorveu certas ideias anti-imperialistas (HAYA DE LA TORRE, 2017) – mas apenas até onde interessava ao paternalismo aprista burguês-nacional, com suas pretensões de grande vanguarda libertária.
Já no outro polo destes equívocos, o erro do marxismo vulgar (de matriz eurocêntrica) deriva da tentativa de elaborar os problemas da América dentro de esquemas que, embora possam ter sido acertados no caso de povos europeus, a nossos povos não foram adequados, prejudicando a elaboração de uma visão mais justa que pudesse ter tido efetividade prática. Esse problema teve sua “resolução” histórica, como se sabe, na dura derrota que sofre o movimento socialista em nossos países a partir dos anos 1960, com a instalação de regimes contrarrevolucionários militares de perfil bonapartista (RAGO FILHO, 2001).
Dentre as questões fundamentais concernentes a esses debates, está a ideia de que em nossas nações o colonialismo tinha conformado modos de produção “feudais” – e que isto nos deixara resquícios após a independência, sendo, pois, preciso levar a cabo uma prévia “revolução burguesa”. Consequência disso seria a orientação estratégica que defendia a aliança dos comunistas, de modo submisso, a frações das classes dominantes (parcelas da burguesia que se acreditou ter interesses “nacionais”).
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A partir das vastas consequências sociais e teóricas da Revolução Russa, seria criada a Internacional Comunista, organização no seio da qual se aprofundariam as discussões marxistas sobre a realidade dos povos da América. Nestes novos debates, grandes pensadores críticos da América viriam a ter protagonismo, aportando interpretações histórico-dialéticas acuradas sobre nossas questões nacionais, conceitos que convergem para a necessidade de um movimento de trabalhadores (unindo campo e cidade) independente, o qual – ainda que possa estabelecer alianças pontuais de urgência – não se submeta a supostas parcelas burguesas “nacionais” (inexistentes). Hoje, em um contexto de agravamento da crise estrutural do sistema, com consequente aumento da violência capitalista (atualmente na forma neoliberal), vemos a real face da burguesia latino-americana: entreguista, antinacional e mesmo fascista, quando sente seu poder ameaçado.
Referências bibliográficas
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** Os autores são professores e pesquisadores do Núcleo Práxis de Pesquisa, Educação Popular e Política da USP
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