FUNDAMENTALISMO

Decisão da juíza Joana Zimmer é uma adaptação de O Conto da Aia

Diálogo insólito, afastamento da criança de 11 anos de sua mãe e a “defesa da vida” parecem extraídos do livro de Margaret Atwood, onde o estupro é legalizado

Decisão da juíza Joana Zimmer é uma adaptação de O Conto da Aia.Créditos: Reprodução/AMC
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Na República de Gilead (antigo EUA) as mulheres férteis, classificadas como Aia, são propriedades do Estado e utilizadas como plataforma para a construção da "nova sociedade". O método é o estupro legal das aias pelos comandantes de Gilead. Cansada dos estupros constantes, a aia OffRed organiza uma resistência para derrubar o regime. Esse é o fio condutor da trama escrita por Margaret Atwood em "O Conto da Aia" (1985) e encontra ressonância na decisão da juíza Joana Zimmer e da promotora Mirela Dutra Alberton. 

Além de ser uma adaptação de “O Conto da Aia” com todos os requintes de crueldade presentes na distopia de Atwood, o diálogo de Zimmer com a criança de 11 anos que está grávida porque foi estuprada, também guarda certa semelhança com o terror psicológico os generais e suas esposas praticam com as aias que, sempre que engravidam, são obrigadas a desenvolverem amor pela criança – mesmo sabendo que não irão ficar com elas – e pela vida que gestada dentro de seus corpos. É o mesmo desejo da magistrada expresso em seu diálogo com a criança. 

O diálogo: 

– Qual é a expectativa que você tem em relação ao bebê? Você quer ver ele nascer? – pergunta a juíza.
– Não – responde a criança.
– Você gosta de estudar?
– Gosto.
– Você acha que a tua condição atrapalha o teu estudo?
– Sim.

Faltavam alguns dias para o aniversário de 11 anos da vítima. A juíza, então, pergunta:

– Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê?
– Não – é a resposta, mais uma vez.

Após alguns segundos, a juíza continua:

– Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção? – pergunta, se referindo ao estuprador.

– Não sei – diz a menina, em voz baixa.

A diferença entre a República de Gilead e o diálogo da juíza com a criança de 11 anos é que no primeiro – ainda que seja uma obra de ficção -, o estupro é uma ferramenta de repovoamento, ou seja, é legalizado pelo Estado e, no Brasil, em tese, crianças e mulheres que engravidam em decorrência de um estupor possui o direito ao aborto legal. Ao negar tal direito com o argumento “em defesa da vida” ou, para usar as palavras da magistrada “Você suportaria ficar mais um pouquinho?” para garantir a sobrevida do feto, a distopia ficcional se abraça com a real. 

Além de todo o horror em torno dessa história, a decisão da juíza Joana Zimmer vai ao encontro da posição do governo Bolsonaro, por meio do Ministério da Saúde, que produziu uma cartilha sobre saúde e aborto onde afirma que “no Brasil não existe aborto legal”, que a maioria das mulheres que recorrem ao mecanismo previsto em lei não precisam dele e que, portanto, as mulheres que se utilizam do aborto legal devem ser investigadas. 

Muita gente considera um exagero aproximações entre obras ficcionais e o mundo real, porém, há uma passagem muito interessante no livro “O Conto da Aia” quando, em determinado momento, a protagonista, que na vida anterior à República de Gilead não participava do cotidiano político, começa, a partir de suas memórias, a construir um entendimento de como chegaram na ascensão de Gilead. Dessa maneira ela começa a enumerar uma série de direitos que foram tirados ou medidas de “segurança extrema” e como eles achavam as pessoas militantes pró-Gilead “excêntricos e toscos”, até que um dia eles explodiram o Congresso e tomaram o poder.

Os argumentos e a decisão da juíza Joana Zimmer não se dão sozinhos, há toda uma esfera cultural e política que coaduna com a ideia de que é “preciso preservar a vida do feto”, mesmo que ele seja fruto de um estupro. O fundamentalismo em curso no Brasil desde a virada do século XX para o XXI encontra guarida em vários espaços de poder, mas principalmente na Justiça e na Política. É como nos diz a personagem de “O Conto de Aia”, “no começo nós não nos importamos”, mas quando se deram conta do buraco em que estavam, já era tarde demais.  

 

Para quem se interessou pelo livro, há uma adaptação em cartaz na Paramount: