A disputa para apropriar-se da democracia, integrá-la a seu discurso, é a disputa sobre quem detém o discurso hegemônico no conjunto da sociedade. Por isso a direita e a esquerda, até a extrema direita, disputam o direito de se dizerem campeões da democracia no Brasil.
Se faz tudo em nome da democracia. Até o golpe de 1964 - recordado recentemente por Braga Netto e pelos comandantes das Forças Armadas -, que introduziu a ditadura que mais radicalmente rompeu com a democracia, foi feito em nome de salvar a democracia.
O Brasil é o pais mais desigual do continente mais desigual do mundo. Pode haver uma democracia numa sociedade tão profundamente desigual, em que as pessoas são tão desiguais diante da lei e tão desiguais na realidade?
Mas pela concepção liberal predominante, basta haver eleições periódicas, diferença entre os três Poderes da República, liberdade partidária e imprensa livre (em que livre quer dizer imprensa privada), para um país ser definido como democrático. Não importando as condições concretas de vida da população.
Se todo mundo parece ser democrata, reivindica a democracia, por que não temos democracias? Por que seguimos sendo sociedades desiguais, de exclusão social, de pobreza, de miséria, de fome, de abandono?
Pelo caráter da democracia que se assume. Há democracias liberais, em que os procedimentos formais são obedecidos, todos têm títulos de eleitor, teoricamente decidem os destinos das sociedades em que vivem. Têm liberdade de expressão, teoricamente manifestam livremente seus pensamentos.
No entanto, no marco das democracias formais, sobrevivem e se reproduzem sociedades não democráticas, em que o acesso aos bens fundamentais está reservado para uma minoria. Em que as condições de vida, de estudo, de acesso à saúde, à cultura, à informação, à possibilidade de tomar consciência da realidade, de se organizar, de participar dos processo de transformação da realidade, de reagir aos problemas que vivem, de conseguir que os governos atendam suas demandas, são absolutamente desiguais.
Que democracias não democráticas, antidemocráticas, então, são essas?
Quem é democrata realmente hoje no Brasil?
Quem luta para estender os direitos elementares à toda a população? Ou quem considera que a economia não cresce porque o salario mínimo é muito alto?
Quem luta pela democratização dos meios de comunicação ou quem detém o seu monopólio e faz uso dele para consolidar as desigualdades e os privilégios da minoria?
Quem fortalece os bancos públicos para desenvolver políticas sociais? Ou quem se vale dos bancos privados para enriquecer na especulação financeira?
Quem faz chegar a atenção de saúde, pelo SUS, à toda a população? Ou quem privilegia a atenção privada à elite que pode pagar planos caros de saúde?
Quem acha que o fundamental é o ajuste fiscal, mesmo às custas dos recursos para as políticas sociais? Ou quem privilegia a luta contra as desigualdades e a favor das políticas sociais?
Democrata é quem quer que tudo siga igual? Ou quem luta pela democratização radical da sociedade?
Democrata é quem quer que nossa política internacional seja subordinada a dos Estados Unidos? Ou quem quer que o Brasil se alie ativamente aos países do Sul do mundo, a começar pelos latino-americanos?
Vivemos um enfrentamento entre os que defendem o neoliberalismo e quem o combate. Entre quem quer resgatar a democracia e quem gostaria de seguir com um regime autoritário.
Não há dois blocos democráticos, cada um com sua visão da democracia. Os que atuaram pela derrubada da presidenta eleita pela maioria os brasileiros, são democráticos. Os que, de uma forma ou de outra, agiram para sua derrubada, não são democratas.
Os que, com a alegação que seja, votaram no Bolsonaro, não são democratas. Os que votaram contra ele, são democratas. Os que lutam pelo fim do governo atual, são democratas. Os que perseveram na sua continuidade, não são democratas.
A democracia deveria ser um valor universal, que esteja por cima das contingências de governos ou de politicas.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum