A pesquisadora (Mackenzie) e apresentadora da CNN Brasil, Gabriela Prioli, deu uma entrevista ao UOL onde comenta o fato de ter sido convidada para ser a Musa nº1 na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. Prioli transita em alguns lugares comuns que, em uma primeira leitura aparentam não ser um problema, mas, como diz o velho ditado, "o diabo mora nos detalhes".
Após declarar que ninguém pode esperar "o espetáculo das passistas", Prioli emenda e afirma que enxerga "uma chance de desconstruir estereótipos. Afinal, por que a musa não pode ser uma intelectual?".
Ao falar que pretende "quebrar estereótipos", é preciso perguntar: quais estereótipos devem ser quebrados? E aqui é necessário fazer um breve histórico do mundo do samba e do carnaval: é fato que o carnaval chega ao Brasil por meios coloniais, mas, entre o final do século XIX e o começo do XX, a festa é apropriada pela classe trabalhadora e, fundamentalmente, pelos ex-escravos que mesclam aos significantes da festa simbologias das religiões de matriz africana e suas respectivas culturas de origem. O Carnaval, assim como boa parte do país, é uma ferramenta política oriunda das resistências anticoloniais.
Ou seja, qual é o estereótipo a ser quebrado? Dos corpos negros que desfilam e constroem o Carnaval há mais de um século no Brasil? Das LGBT, que desde o início do século XX subvertem toda ordem do gênero e desmascaram a hipocrisia do sexismo brasileiro?
Mas calma, que a coisa fica ainda pior: "Vou desfilar cheia de brilho e com meus looks de Carnaval sabendo que meu diploma de Mestrado pela USP continua válido e que meu livro segue na lista dos mais vendidos. Tenho segurança para me colocar nesse lugar que perturba preconceitos. E, cá entre nós: gosto disso!".
Meu deus, quantos preconceitos estão sendo perturbados aqui, não? Vejamos: professora e pesquisadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com mestrado em Direito pela USP e com um livro entre os mais vendidos. A perturbação aqui deve ser entendida no sentido inverso, pois, a partir da análise de Prioli, ao colocar que, ao levar o seu diploma e o seu livro mais vendido "perturba preconceitos" só podemos entender que o Carnaval é composto por pessoas ignaras, sem formação intelectual, passa longe de uma universidade e pior: não gosta de intelectuais.
O que perturba são tais declarações vindo justamente de uma pessoa que vai levar pra Sapucaí o seu livro que está entre os mais vendidos e que se chama "Política é para todos" (Cia das Letras). Talvez Prioli não tenha se atentado, mas se tem algo profundamente político, intelectual e para todos neste país é o Carnaval. Este sim, perturba historicamente preconceitos, barreiras de gêneros, de sexualidades, de raça e classe, principalmente aquele que é realizado fora dos camarotes e que, neste momento, corre risco de ser perseguido por forças policiais caso decida ir às ruas.
Nas entrelinhas, Gabriela Prioli nos diz que “mulheres brancas também podem sambar” e no caso dela, “mulheres brancas intelectuais” ... nada mais representativo das estruturas de poder de uma sociedade como a brasileira, que até hoje não encarou de frente as heranças, estas sim perturbadoras, do colonialismo que nos faz uma nação profundamente violenta, racista, sexista e LGBTfóbica.
Quando uma pessoa branca vai à Sapucaí acompanhada de seu diploma e seu livro mais vendido, ela não está quebrando ou perturbando preconceito algum, mas está reforçando as clássicas hierarquias que compõem o Brasil.
Se algum dia as hierarquias de raça e classe foram perturbadas no Brasil, foi quando, a partir das políticas educacionais nas gestões de Lula (2002-10) e Dilma Rousseff (2010-16) permitiram, pela primeira vez na história do país, que as pessoas negras, a classe trabalhadora, travestis e transexuais adentrassem as universidades.
Por fim, a entrevista de Gabriela Prioli nos faz lembrar de uma apresentação constrangedora da cantora Mallu Magalhães, que dedicou a sua performance “pra quem é preconceituoso e diz que branco que não pode tocar samba”. Está tudo conectado.
*Este artigo não reflete necessariamente a opinião da Revista Fórum