FALSIDADE

A mentira e a farsa podem reeleger Bolsonaro?

Se formos pegar a história das crenças e das ideias religiosas, o governo Bolsonaro pode ser comparado ao do “falso profeta”

Bolsonaro e sua retórica mentirosa.Créditos: Isac Nóbrega/PR
Escrito en OPINIÃO el

Bolsonaro disse que acabou com a Lava Jato porque, segundo ele, “não tem corrupção no seu governo”. Mas quatro ministros foram dispensados ou pediram para sair justamente por conta da corrupção. Bolsonaro, uma vez questionou que duvidava que houvesse algum vídeo dele dizendo que a Covid-19 era apenas uma gripezinha. Guedes diz que a economia está decolando quando todos veem que a crise aumenta a cada dia que passa.

Bolsonaro diz defender e valorizar a liberdade, mas idolatra ditadores e a ditadura civil-militar brasileira. Mas o mais asqueroso é o deputado bolsonarista Gabriel Monteiro que cria vídeos falsos, montagens fraudulentas, para dizer que é uma espécie de defensor da justiça.

A falsidade e a fraude tomaram conta do discurso político. A dissimulação sempre fez parte da retórica política, mas nunca foi tão descarada. Patrick Charaudeau destaca que “poder-se-ia mesmo dizer com algum cinismo que o político não tem de dizer a verdade, mas parecer dizer a verdade, como pregava tanto Maquiavel – para quem o Príncipe deve ser um grande ‘simulador e dissimulador' – quanto Tocqueville, para quem certas questões devem ser subtraídas do conhecimento do povo que ‘sente mais do que raciocina'".[1]

Mas a falsificação do óbvio é inédita. Os políticos antes preferiam esconder seus podres ressaltando as coisas boas que fizeram. Mas o governo Bolsonaro, como não realizou nada de relevante nos últimos três anos, investe intensamente na dissimulação.

Acho que a melhor referência para compreender o que está acontecendo é o diálogo criado por Voltaire entre o faquir Bambabefe e o discípulo de Confúcio, Uang. O primeiro defende a ideia de que o povo deve ser enganado, enquanto o segundo acredita que “jamais se deve enganar quem quer que seja".[2]

Bambabefe diz é “preciso imitar o Ente Supremo, que não nos mostra as coisas tais como são”. Uang explica que as ilusões visuais são uma questão relacionada à teoria da ótica.

Em seguida, o faquir diz que é preciso enganar o povo assim como “os médicos enganam as crianças para o seu próprio bem: dizem-lhes que lhes estão dando açúcar, e na realidade trata-se de ruibarbo. Portanto, meu caro, posso muito bem enganar o povo, que é tão ignorante como as crianças”.

Uang responde que nunca mentiu para seus filhos e estes são felizes. Mas Bambabefe não se cansa e diz que é necessário intimidar as pessoas com a questão da punição após o pecado. Uang responde dizendo que há pessoas entre o povo que raciocinam e ridicularizam as superstições.

Bambabefe não desiste e vai logo ao ponto. “Julgais que se pode ensinar a verdade ao povo sem a sustentar pelas fábulas?”. Uang responde magistralmente: “Por que não nos dignarmos a instruir nossos operários como instruímos nossos letrados?”. Bambabefe se indigna parecendo o ministro Guedes, ou os tecnocratas da educação que defendem a valorização do ensino técnico para os pobres: “Cometeríeis uma grande tolice; é como se pretendêsseis que eles tivessem a mesma polidez, que fossem jurisconsultos: isso não é possível nem conveniente”. Como se filho de pedreiro não tivesse o direito de ser juiz.

Uang critica o fato de que para Bambabefe o povo não poderia discordar da autoridade. Para ele a diferença de ideias é sim legítima: “Quando mesmo existissem filósofos que não estivessem em acordo com meus princípios, não deixariam de ser pessoas de bem; não deixariam de cultivar a virtude, que deverá ser abraçada por amor, não por medo".

Voltaire já havia discutido esta questão no verbete “Falsidades das virtudes humanas”. Acha um absurdo que muitos não acreditam na virtude, apenas na caridade cristã; que só podem ser bons os que são cristãos. “Que infâmia pretender que ninguém pode ter virtude senão nós e nossos amigos!”.[3] Isso é pura falsidade. Bolsonaro age assim, os que não defendem os valores cristãos e tradicionais são o mal; todos são comunistas (como se ser comunista fosse algo maléfico). Ele se diz o único que não é corrupto. Muitos acreditam, pois se estar a defender os valores cristãos como pode ser um mentiroso?

O governo Bolsonaro é o mais ideológico de todos, já que por ideologia devemos entender a falsificação da realidade, dos fatos. Se formos pegar a história das crenças e das ideias religiosas, o governo Bolsonaro pode ser comparado ao do “falso profeta", profetas cultuais que trabalhavam ao lado do poder político e “predizem ao rei a vitória desejada".[4]

A falsidade “cristã”, apoiar-se em uma moral e a partir dela tudo se torna bom e justo, passou a ser a base do governo atual. As redes sociais e a facilidade de produzir farsas fizeram com que a nossa era fosse muito mais dominada pela farsa que o Antigo Regime que Voltaire e outros filósofos iluministas criticavam. Será que a razão terá capacidade de derrubar novamente as trevas?

 

[1] CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. Trad: Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2006. p. 106.

[2] VOLTAIRE. Dicionário filosófico. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 240.

[3] Id., p. 216.

[4] ELIADE, M. História das crenças e das ideias religiosas. Tomo 1, Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 183.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.