REVOLUÇÃO

Contra o milenarismo “socialista”, o “catastrofismo com esperança” - Por Valerio Arcary

Não é razoável a expectativa de uma situação revolucionária somente para a próxima geração, quando já não estaremos mais aqui. O marxismo não é uma religião

Escrito en OPINIÃO el

   A paciência é a coragem da virtude

                                                                A paciência é amarga, mas o seu fruto é doce

                                                                                            Sabedoria popular portuguesa

 

Quando se abre uma grande crise, e estamos em uma crise gigante, depois de três anos de Bolsonaro no governo, - sanitária, econômica, social, ambiental e política, agravada pela guerra na Ucrânia - ressurge na esquerda a pressão de uma visão do mundo que podemos chamar de “milenarismo” socialista. Não é algo inusitado. A estratégia revolucionária expressa um projeto político que tem pressa.

Mas o capitalismo não terá “morte natural”. O que não é o mesmo que dizer que não se manifestou na história uma “tendência ao desmoronamento”, isto é, uma tendência a crises cada vez mais sérias e destrutivas. A hipótese da crise final ficou conhecida na tradição marxista como a teoria do colapso. Outra versão de uma ideia aparentada é a teoria da “iminência” da revolução.

Os últimos cento e cinquenta anos já foram um intervalo histórico suficiente para se concluir que não devemos subestimar o tempo histórico do capitalismo: suas crises convulsivas, por mais terríveis que sejam, não resultam em processos revolucionários, a não ser quando surgem sujeitos sociais com disposição revolucionária. Os critérios objetivistas que diminuem a centralidade do protagonismo do proletariado e dos oprimidos foram refutados pela história.

A perseverança militante não deve se alimentar de um “doping” ideológico. Um compromisso sério exige enorme resiliência. Ou uma imensa paciência que repousa na confiança de que a classe trabalhadora e seus aliados sociais entre os oprimidos irão lutar, em algum momento, com “fúria” revolucionária. Só não podemos saber quando.

Mas confiamos que, mais cedo do que tarde, se levantarão, em função da degradação de suas condições de existência. Mesmo no Brasil, onde a dominação burguesa está ainda longe de se sentir ameaçada. Recém estamos saindo, desde meados de 2021, de cinco anos de situação reacionária. A luta para derrotar Bolsonaro ainda está por ser feita. O neofascismo não é uma “cadáver insepulto”.    

Ideias “milenaristas” sempre tiveram audiência nas massas populares. Visões de mundo que repousam na expectativa de um desenlace “apocalíptico” da sociedade, e apostam na redenção de um novo “começo” podem ou não ser, religiosamente, inspiradas, mas são todas milenaristas. A escatologia é uma interpretação teológica que atribui um “sentido” para a história. Se dedica ao estudo do “fim do mundo”.

Concepções escatológicas são finalistas e presumem que existe um destino que nos espera. O receio do cataclismo é compensado pela imaginação utópica. Respondem à esperança de que, em um novo “milênio” ou nova “era” a vida será diferente e melhor. São indivisíveis de perspectivas messiânicas. O pensamento mágico engrandece o papel substitucionista de uma liderança que teria sido o “escolhido”.

O milenarismo na esquerda é uma forma de catastrofismo com esperança: terceirizamos para atalho de uma ruína e o desastre, calamidades e cataclismos a tarefa de derrotar o capitalismo. A premissa desta visão do mundo é que uma “grande crise” pode ser a antessala do despertar de milhões de trabalhadores e jovens para a ação coletiva. Isso é verdade.

A história sugere que sem o choque terrível de uma grande crise não é previsível que as amplas massas se coloquem em movimento com disposição de luta revolucionária. Mas há uma diferença entre “pode ser” e “será”. Embora necessária, infelizmente, a “grande crise” não é suficiente para que se abra uma situação revolucionária. Insistir numa expectativa reducionista de que a crise abrirá um caminho é “objetivismo”.

Na história há muito mais crises do que situações revolucionárias. Além disso, há muito mais situações revolucionárias do que revoluções. A transformação da sociedade depende, também, irredutivelmente, da maturidade dos fatores subjetivos. Estes estão, invariavelmente, atrasados em relação aos fatores objetivos. Na verdade, dramaticamente, atrasados. Ainda que sejam muito necessárias, as mudanças são demoradas e complicadas.

Além de uma grande crise é indispensável que aconteça um “terremoto” na consciência de muitos milhões, politicamente, inativos, e com a mente entorpecida pelo desespero. Só então se abre a vertigem de urgência indispensável para que uma revolução seja possível. Só então as organizações populares se fortalecem com a emergência de dezenas de milhares de dirigentes locais que se articulam nos locais de trabalho e moradia, nos centros de estudo e em todos os espaços de vida social. Só então as ilusões reformistas na regulação do capitalismo podem ser superadas, e as organizações revolucionárias encontram audiência de massas.

Até então, a ansiedade e impaciência de militantes socialistas jovens é compreensível. Não é fácil sustentar a perspectiva de que a revolução é possível, indefinidamente. Mesmo toda longa espera tem limites. A aposta política não é uma “promessa”. Não fosse o bastante, existem, também, as margens de incerteza na possibilidade de vitória.

Em resumo, o horizonte político precisa ser previsível para ter credibilidade. É necessário que a luta pelo socialismo se coloque no contexto dos limites políticos de uma vida. Não é razoável a expectativa de uma situação revolucionária somente para a próxima geração, quando já não estaremos mais aqui. O marxismo não é uma religião.

A paixão revolucionária se alimenta de uma esperança que vai além do imediatismo, além dos limites estreitos dos prazos curtos dos meses e anos, além da rotina dos calendários eleitorais. A aposta é que a paciência política será recompensada pela precipitação de crises sempre mais graves, e que o tempo corre a nosso favor. Apesar de uma terrível lentidão histórica.

Os últimos 150 anos têm sido pródigos de exemplos de gerações de revolucionários socialistas que generosamente foram vítimas do autoengano em relação à avaliação das situações e conjunturas nas quais estavam chamados a atuar. A aferição das relações de força entre as classes é com certeza uma das questões decisivas do abecedário marxista, o que não impediu que os erros “facilistas”ou “objetivistas” tenham sido recorrentes. Estamos, evidentemente, diante de uma situação terrível. Quando é assim, é importante nos distanciarmos um pouco da pressão dos dias e procurar a perspectiva histórica.

Em alguns períodos os horizontes histórico-sociais do capital se contraíram: depois da vitória da revolução russa; depois da crise de 1929; depois da revolução chinesa; depois da revolução cubana; depois do Maio 1968; depois da revolução portuguesa, da iraniana e nicaraguense, por exemplo.

Mas em outros se expandiram: depois do New Deal de Roosevelt; depois do acordo de Yalta/Potsdam, ao final da II Guerra Mundial; depois de Reagan/Thatcher nos anos 80, ou depois da restauração capitalista no início dos anos noventa do século passado.

Os vaticínios políticos catastrofistas neles inspirados se aproximaram, perigosamente, de uma versão marxista de um novo milenarismo. Podemos ser melhores do que isso.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum