Diários de um professor: Como surgiu a onda que relativizou tudo, até o nazismo?

Quem teve experiência à frente de salas de aula com jovens nos últimos anos percebeu quando a chave começou a virar. A explosão de um “pseudoconhecimento freestyle de internet” deu eco às insanidades – Por Henrique Rodrigues

Arquivo pessoal
Escrito en OPINIÃO el

Os episódios inacreditáveis de apoio ao nazismo que vimos nos últimos dois dias não foram isolados. Há uma sequência enorme de acontecimentos e fatos, como os gestos supremacistas, o copinho de leite tomado numa live, as citações e emulações em pronunciamentos e até a visita de parlamentar neonazista ao Palácio do Planalto, com direito a foto oficial ao lado do chefe de Estado, que apenas reforçam a legitimação da qual passou a gozar essa escória social após a chegada ao poder de uma figura abjeta que flerta dissimuladamente com todo tipo de ideologia e conduta assassinas.

No entanto, tenho a intenção aqui de tratar da outra ponta do problema: como surge e de onde vem essa superdisposição de tantos brasileiros para abraçar pautas nojentas e, sem qualquer constrangimento, tentar argumentar cinicamente em favor de algo repulsivo?

Como alguém aceita ser paquita de Eichmann numa boa? Por que alguém resolve, da noite para o dia, tentar explicar malabaristicamente uma coisa para qual já existe explicação definitiva? É muita presunção em achar que sabe mais que todo mundo? É ignorância em estado bruto? É um incontrolável mau-caratismo congênito?

Creio que pode ser tudo ao mesmo tempo, mas quem é professor e convive com a realidade das salas de aula pode identificar o cerne desse problema com mais facilidade e precisão.

Estive por 15 anos à frente de centenas de salas e milhares de jovens. Boa parte disso foi no período que compreendeu o colapso da frágil democracia brasileira, das tais jornadas de 2013 e da explosão da internet ultrarrápida e acessível de qualquer lugar.

Todas essas mudanças fizeram com que determinados contornos humanos ficassem mais expostos, facilitando assim identificar pessoas de personalidade "incomum". Aí alguém pode perguntar, "ah, você está falando de gente mau-caráter?".

Não exatamente.

Vou citar dois casos reais que ocorreram com alunos na faixa dos 17 ou 18 anos e que se preparavam para o período vestibular em estabelecimentos privados de ensino.

Certa vez, creio que há uns seis anos ou mais, eu falava sobre o cenário social da Europa no século XIX, as tensões no campo do trabalho em decorrência sobretudo da Revolução Industrial e como o pensamento teórico avançava imbuído por esse ambiente. Citamos brevemente Comte, Weber, Durkheim e Marx, assim como características contextualizadas de cada um, ainda que simplificadas, uma vez que a finalidade da aula era mostrar como aquela paisagem sociológica interferiria na produção literária realista.

Um rapaz que eu já observava havia um tempo levantou a mão e nem mesmo esperou que lhe passasse a palavra para começar.

"Você vai falar da Escola Austríaca da Economia, de Mises?"

Percebendo onde ele queria chegar, fui educado e sucinto respondendo apenas que não e que aquilo não vinha ao caso. Só que ele insistiu antes que eu retomasse.

"Mas você tá falando de um comunista, eu acho que você tem que falar do Mises também... Por que não vem ao caso?"

Procurei ser mais claro e então disse que se tratava de um pretenso teórico desclassificado que não tem qualquer relevância em lugar algum, que ganhara contornos no Brasil recentemente pela boca de gente pouco preocupada com a verdade e a realidade e, principalmente, porque não mantinha nenhuma relação com o tema da aula.

Ao perceber que ele iria esticar ainda mais a prosa, me antecipei e perguntei então onde ele tinha tido contato com esse assunto.

Foi aí que o jovem explicou que assistia a vídeos do MBL, antes ainda do grupo ganhar fama política. Ele ainda citou umas figuras bem conhecidas da think tank, que hoje têm mandatos.

Encerrei em definitivo aquele papo estéril e disse que se ele quisesse saber mais sobre o liberalismo, liberalismo econômico e o capitalismo poderia procurar a professora de Sociologia e Filosofia, que ela o indicaria, certamente, Adam Smith, John Locke, entre outros.

É curioso que esse rapaz não participava de nada nas aulas. A colega de Sociologia e Filosofia disse o mesmo sobre ele. Havia um desprezo assumido pelo conhecimento formal e por nomes relevantes que servem de base teórica para essas ciências. Nada que tivesse lastro intelectual o interessava, exceto videozinhos produzidos por idiotas presunçosos que sabem "refutar" tudo com uma argumentação asquerosa, construída pelo pedante de forma caricata, com orientações de um manual de redação vestibular.

Em outra ocasião, uns dois anos depois, um aluno reagiu com extrema agressividade durante uma aula em que falava do dramaturgo paraibano Ariano Suassuna. Tratávamos do papel importantíssimo desempenhado pelo autor na defesa da cultura do homem do semiárido e pela perpetuação do modus vivendi das populações do sertão, no âmbito cultural, haja vista o conflito entre tradição e modernidade.

O moço ridicularizou Ariano, disse que aquilo era uma "merda" e que só "gente que nem eu lia isso", como se o pensamento embutido na estética do imortal artista armorial só pudesse ser absorvido ao abrir um livro.

Com uma paciência monástica tentei argumentar e ao notar que aquilo não iria tomar bom rumo, o questionei sobre o porquê desse ataque específico a Ariano.

Aquela jazida de conhecimento contou, então, que "um cara" que ele seguia no YouTube (ainda não se usava a expressão influencer) havia comentado que certa vez o escritor paraibano falou mal de Michael Jackson e que aquilo era inadmissível porque o cantor norte-americano era infinitamente melhor que o autor brasileiro, embora tenha admitido depois que conhecia quase nada da obra do Rei do Pop.

Chamou-me a atenção o fato desse mesmo jovem já ter se recusado a ler em aula um breve texto de autoria de Umberto Eco, assim como já ter debochado de uma crônica da obra "Viventes das Alagoas", de Graciliano Ramos.

Na sua perspectiva, um sujeito intelectualmente mal-ajambrado que desqualificava a cultura brasileira fazendo contraponto com elementos da cultura de massa pop dos EUA, numa plataforma de vídeos da internet, serve de bússola. Era naquilo que deveria crer, e não em qualquer “livrinho” ou profissional do ensino.

Colegas de História e Geografia relatavam situações idênticas em suas respectivas áreas do conhecimento. Todo mundo dominava tudo, mesmo ficando claro que essas pessoas não sabiam coisas básicas. A fonte era sempre a internet e os polímatas eram os youtubers, que os faziam descobrir a roda.

Lembro de um companheiro que contava de um rapaz que podia provar por A mais B que a Ditadura Militar tinha sido uma maravilha e que o ocorrido em 31 de março de 1964 não fora um golpe de Estado, mesmo confessando que jamais ouviu falar o nome de João Goulart.

E note que não estou aqui colocando em discussão a tal história da "didática" e do "despertar o interesse". Eu sempre fui um destrambelhado em sala e jamais tive problema em prender a atenção dos alunos ou fazer brincadeiras (até exageradas) durante as aulas.

O que existe de fato é uma legião de cidadãos, alguns ainda jovens atualmente, outros já marmanjos e com mais de 30 anos, que nutrem desprezo e ódio supremos pelo conhecimento, e arranjaram na internet uma forma de promover e se alimentar de uma espécie de "formação freestyle". Aí nascem as bobagens como "respeitar direito de expressão de nazista", "nazismo de esquerda", "Lula é comunista", "a Ditadura foi a melhor época do Brasil", "Bolsonaro não é de extrema direita" e uma infinidade de escrotices e de besteirol sem um dedinho sequer na realidade.

A babaquice pseudolibertária de dar um partido para os nazistas brasileiros, mesmo tendo esses desgraçados provocado um dos maiores genocídios da História, ou o tchauzinho-paródia do ‘sieg heil’, cheio de cinismo, são apenas reflexos que ganharam notoriedade nesse mundo paralelo do relativismo dos idiotas.

Evidentemente que figuras políticas mais velhas e há décadas longe dos bancos escolares não se encaixam nessa dinâmica. Elas apenas se aproveitaram dos fatos, fomentaram essa suruba pseudointelectual e, pra piorar, ao chegarem ao poder, de alguma forma, transmitiram para os energúmenos que agora eles estão legitimados e cobertos de razão.