O horror invadiu os lares nos quatro cantos do planeta com tiros, explosões e desespero. Crianças chorando alucinadas e gente comum, em trajes civis, ensanguentada, sendo carregada por vizinhos e familiares com semblante de pavor. Os ataques militares realizados pela Rússia contra núcleos urbanos na Ucrânia, depois que Vladimir Putin autorizou uma gigantesca operação contra sua nação vizinha, chocaram o mundo e, por consequência, os brasileiros.
Nesse turbilhão de imagens perturbadoras, parece até que uma profunda paz social foi quebrada no Brasil, ainda que por notícias vindas de longe. Assustamo-nos com os corpos trucidados e os direitos à dignidade e à vida violados, sem que por um segundo lembremos que uma tragédia de dimensões semelhantes acontece diariamente bem debaixo de nossos narizes.
Ações militares realizadas em favelas brasileiras, em sua maior parte por polícias militares estaduais e em alguma medida pelas Forças Armadas, especialmente no Rio de Janeiro, metrópole com quase sete milhões de pessoas, produzem um horror dilacerante que em quase nada se diferencia da tragédia ucraniana, exceto pelo uso dos obuses e mísseis disparados de aviões de combate.
Gente inocente, desde donas de casa com roupas surradas que voltavam da quitanda, passando por jovens magricelos que perambulam por vielas sem qualquer perspectiva de vida social ou profissional, até crianças que brincam descalças, aparece diariamente banhada em sangue sendo carregada em lençóis e lonas, perfuradas por projéteis de uso militar disparados por agentes de um Estado que há muito se furtou de assegurar dignidade a esses brasileiros.
Para além de ignorarmos e naturalizarmos essa barbárie, que especialmente recai sobre os pretos das periferias largadas do Brasil, seguimos alimentando um eurocentrismo que só nos alerta para o mal e para o horror quando o desespero do choro ou as manchas de sangue provém de crianças e adultos brancos, que em nossas cacholas habitas por pensamentos raciais difusos, de alguma maneira, geram identificação, seja lá o que isso signifique, umas vez que a cultura brasileira, oriunda de uma mestiçagem em elevado grau e calcada na colonização ibérica, em nada se assemelha à vida e à cultura de nações eslavas.
O fenômeno não ocorre só aqui. Talvez os motivos que levem a esse comportamento “involuntário” no Brasil sejam um pouco diferentes dos que fazem outros brancos latino-americanos, europeus e norte-americanos em geral agirem de forma parecida. Um comentarista da rede CBS, Charlie D’Agata, dos EUA, num misto de sinceridade e escrotice incontida, até assumiu que os ucranianos eram suficientemente civilizados para nos comovermos com eles, diferentemente dos afegãos e iraquianos, que já estariam desumanizados por conviverem com a violência constante.
Agora, experimente você, caro leitor, abordar essa problemática de forma direta na cervejinha com os amigos no bar, ou na roda do trabalho, ou ainda por meio de uma publicação nas redes sociais. Os batalhões permanentemente em prontidão para “desesquerdizar” a sociedade, muitas vezes compostos por gente que se considera antirracista e com notório poder evolutivo namastê-gratidão, desfecham ataques furiosos. Todos eles sempre estiveram preocupadíssimos com as perturbadoras imagens de pobres brasileiros sendo arrastados por becos sujos, deixando um rastro de sangue pelo chão.
Apenas não esperneiam nos grupos de WhatsApp, não protestam nas redes, não confeccionam cartazes com palavras de ordem e tampouco usam a tarja “Pray for Vila Cruzeiro” no Twitter. O gatilho para os pedidos de justiça só vem mesmo quando as vítimas são os iguais, e que têm o horror dramatizado por uma imprensa que age de forma absolutamente idêntica, supervalorizando e ressaltando os contornos enviesados do tal inegociável zelo pela vida (de alguns).