J. K. Rowling, Woody, Bertolucci, Polanski, Lars Von Trier… O que eles têm em comum? Todos já foram cancelados. E não estamos falando aqui sobre mérito ou causa, e sim consequência. Queira você concorde ou não com as razões que os cancelaram, ou questionem os fundamentos, o efeito é o mesmo. Muita gente passou a boicotar (questão de foro íntimo, que é livre e útil) ou até mesmo censurar suas obras (coibir terceiros de seu direito de escolha, o que é questionável)…
Aí algumas pessoas costumam perguntar: “Tem que separar o autor da obra, não é?”… Mas tampouco soa razoável acreditar que dê pra separar o autor da obra. Na verdade, a presente resposta é um pouco mais complexa do que isso…
Não, este autor não acredita em separar autor da obra, não. Porém, é certo que autores, com quem eu podemos não concordar em nada, já conseguiram fazer autocrítica e transpor isso para novas estéticas. É um lugar ímpar: O de conseguir criar linguagem de um olhar opositivo a realidades com que não estamos acostumados a lidar… justamente por discordar.
E, uma vez feita a obra, ela pertence ao mundo, e passamos a agregar significados. Exemplos mis… Uma perfeita hipótese que se encaixa nisso recentemente é a autora J. K. Rowling e seus comentários transfóbicos. Isso não faz de sua maior obra, “Harry Potter”, necessariamente uma saga transfóbica. Muito pelo contrário, ao longo dos anos, foi uma das sagas mais abraçadas pela sigla LGBTQIAP+, que vê na saga uma emancipação com que se identificaram em auto-aceitação. Agora, a escritora Rowling não pode simplesmente voltar atrás em relação às formas como sua obra foi reapropriada pelos fãs. A obra pertence ao mundo.
Não necessariamente se trata de separar o autor da obra, mas saber analisar com crítica o poder reparador da arte em relação ao que pertence à autoria e ao que passa a pertencer ao mundo. Quais ferramentas são oferecidas pra reocupar a obra e nos reapropriarmos dela? Uma vez reapropriada, ela pode servir ao mundo, tanto quanto melhor. Às vezes, serve até pra combater aquilo pelo que seu criador é acusado (justa ou injustamente)…
A gente lê o filósofo Martin Heidegger até hoje e ele apoiou o Nazismo. Mas seus livros falavam sobre emancipação da mente e do espírito. Ele salvou livros de Nietzsche da interpretação equivocada pelo próprio Nazismo que tentou se apropriar do conceito de super-homem equivocadamente pro conceito de raça ariana.
A mesma coisa com Sócrates e Platão, pois eles defendiam a liberdade da mente, mas apoiaram e se utilizaram de escravos no sistema grego. Eles não entendiam melhor do que isso, porque a forma como viveram suas vidas era fruto do meio. Isso deve ser julgado e reparado, sim. Mas as obras possuem critérios próprios de análise. Alguns destes critérios inevitavelmente se confundem com os critérios que julgamos o autor, sim, e que aumentam também nosso nível de exigência pela obra, mas não resume a análise como um todo.
Justamente por tudo isso que não estamos separando o autor da obra. Estamos debatendo até os dias de hoje o quanto eles erraram, então, isso demonstra o quanto levamos sim em conta, e não devemos deixar de levar. Ninguém fala da obra sem falar dos erros de seus autores. Fica uma grande marca. E por isso exigimos ainda mais da obra, pois vaza sim. E justamente por isso elas podem ser reapropriadas.
O ato de a sigla LGBTQIAP+ ter abraçado “Harry Potter”, retomando o exemplo acima, ainda mais depois das malfadadas e equivocadas declarações de Rowling, foi uma reação à transfobia. A análise ferrenha e a respectiva ressignificação só foram possíveis devido à força com que foram reanalisadas justamente por causa da transfobia. Nós inventamos novos critérios de análise pra entender melhor a obra depois que ela é maculada pelos atos de seus autores.
E, às vezes, a reapropriação dá certo, noutras não. Podemos dar outro exemplo com uma expressão que era negativa e persecutória, e virou filosofia. A palavra “Queer” era uma ofensa. Aí Judith Butler nomeou estudos de gênero e sexualidade como “teoria queer”. Ela ressignificou uma expressão de perseguição pra uma bandeira identitária. Similar ao que aconteceu com as mulheres que se reapropriaram de palavras como bandida e etc, em movimentos feministas. Tipo o sucesso musical de Pabllo e Pocah: “Ai como eu tô bandida”.
A palavra foi ressignificada justamente pelo mal que ela gerava para purgar e reparar seus danos. Outras pessoas agregaram olhar. Essa é a questão! O olhar de terceiros provocados pelo malefício original foi o que agregou novos valores. Outro exemplo é Alfred Hitchcock na década de 50, quando era tido como diretor escapista e comercial por todo o meio, e François Truffaut se debruçou e analisou a obra dele sob o enfoque da “teoria do autor”. Isso não quer dizer que a intenção do autor não continuasse contendo uma pegada comercial, mas Truffaut agregou olhares extras que deram mais camadas, inclusive com olhar opositivo à intenção comercial que CONTINUOU a existir ali dentro das obras. (E não estamos falando sobre um olhar moderno sobre Hitchcock, que traz até muitas mais atualizações e problematizações).
Também devemos nos declarar veementemente contra censurar a quaisquer obras, como justificado mais acima, e que não deslegitima um cancelamento justificado. Mas sim, também é possível que as pessoas estejam tomando parte pelo "todo"... Piamente é possível que estejamos também renovando nossas ferramentas ao lidar com o mundo pelas necessidades que o "todo" implica e gera. E por isso o presente texto.
A sociedade sempre evolui. Sempre vai evoluir. E sempre iremos demandar coisas novas, o que nunca deixa de ser bom quando gera efeitos positivamente transformadores. O ser humano é um animal de transformação (nem sempre positivas, mas sempre mutantes). E se as transgressões nos exigem olharmos mais atentamente à obra, a agregarmos mais olhares, isso não só nos estimula, como faz da nossa posição crítica ainda mais valorosa, pois estamos agregando valores.
São os olhares passíveis de serem agregados que fazem as obras terem sobrevida, e não apenas o olhar originário do cancelado. Apenas estamos propondo justamente inverter a tabula referencial sem excluir o olhar originário, mas usar como referência primeira os tempos e adaptações que nós agregamos a elas. Eis o nosso trabalho na crítica.
E, é bom reiterar, esse texto não é contrário ao cancelamento merecido, pois é sim execrável algumas coisas que algumas pessoas fizeram. E o boicote é sim uma ferramenta livre e útil a isso (censura jamais). Porém, existe outro lado, pois existem memórias afetivas de público associadas a algumas obras, contaminadas ou não em sua raiz ou, posteriormente, por erros futuros de seus autores, que podem sim ressignificar e reocupar as obras.
E podemos até não nos tocar por uma ou outra obra de alguém cancelado, mas é inegável que poderá tocar terceiros. Para além disso, há de se concordar sim que existem outras formas de acessar essas obras sem dar valor financeiro para os que foram justificadamente cancelados, como a democratização de acesso.
Existem várias formas independentes de redirecionamento da fonte (nesses tempos de nazi-fascismo na política, podemos citar o "jornalismo Wando" e outras mídias alternativas que recompartilham mídias hegemônicas para não darmos audiência a elas); e existem várias formas de não fazer lucrar gente execrável, mas sim democratizar o acesso a potencializar releituras contra-hegemônicas. Porque esquecer a obra ou o que foi feito de errado historicamente só estará nos confinando a repetir os mesmos erros do passado, como a máxima já diz, pois se não ouvirmos todas as vozes e soubermos separar o joio do trigo com consciência crítica, corremos o perigo de uma história única, e não plural, como deveria ser.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum