O cinema tem um grande poder de trazer representatividade e validação – principalmente quando consideramos o alcance e o poder da arte de transformar e motivar todo tipo de pessoa com histórias inspiradoras. Mas, quando estamos falando de minorias marginalizadas da sociedade, esse processo pode ser um pouco mais complexo, já que, ao mesmo tempo em que a arte cinematográfica é cara em acesso, também é cara em sua produção.
Povos invisibilizados existem em todo mundo e a produção audiovisual é uma ferramenta poderosa para trazer visibilidade para causas importantes de várias etnias que são colocadas à margem. Transportando isso para o Brasil, conseguimos enxergar um aumento da produção de conteúdos visuais protagonizando pessoas negras, colocando em visibilidade várias pautas relacionadas ao racismo institucionalizado que existe em nosso país. Mas, ao mesmo tempo que esse movimento de celebração da cultura afro-brasileira acontece, ainda invisibilizamos a população indígena, perpetuando o apagamento cultural e a falta de representatividade em nossas produções midiáticas.
Apesar de ser possível conceber, mesmo que minimamente, essas produções no Brasil, é importante levarmos em consideração que, em alguns lugares do mundo, as narrativas sobre minorias de direitos são ainda menos viáveis, principalmente porque o acesso à cultura de determinados povos é negado. Um exemplo muito claro, é do povo curdo - uma etnia com a cultura extremamente invisibilizada e hostilizada – que já luta por sua independência por mais de um século. Essa etnia que, segundo o canal DW News, possui entre 30 e 40 milhões de pessoas, viveu e ainda vive supressões violentas no que tange a sua cultura e liberdade.
Os curdos são entendidos como os povos originários das planícies da Mesopotâmia, território compreendido entre os rios Eufrates e Tigres, e dos planaltos onde hoje habitam (entre Turquia, Irã, Armênia, Iraque e Síria). Mas, em um artigo escrito no site Kurdistanica, Mehrdad A. Izadyno diz que não há uma origem clara do povo curdo, e sim o resultado de "milhares de anos de evolução interna contínua e assimilação de novos povos e ideias introduzidos esporadicamente em suas terras". Levando em consideração esse dado, podemos dizer que a cultura curda é milenar e as sucessivas tentativas de apagamento dos costumes curdos configuram um atentado à própria história da humanidade.
Na Turquia, durante décadas, os curdos sofreram represálias severas por parte do governo. Apesar de representarem aproximadamente 20% da população do país, segundo a DW News, esse povo era proibido por lei de manifestar sua cultura – seja nos dialetos, músicas ou outros tipos de expressões identitárias. Até a palavra "curdos" foi banida pelo governo, sendo que sua menção poderia levar à prisão. Nesse período, o povo curdo teve até seu nome roubado e eram chamados de "mountain turks" (turcos das montanhas, em tradução livre) pela população.
E a opressão da liberdade não acontecia somente na Turquia. Em outros países onde a população de curdos é significativa, como Iraque e Síria, também há embates que buscam suprimir a autonomia dessa etnia. No Iraque, o momento mais crítico foi no governo de Saddam Hussein, que promoveu genocídio curdo e suprimiu as rebeliões com auxílio de armas químicas, como o ataque a Halabja, em 1988. Neste ataque, aproximadamente 5 mil curdos foram mortos.
Já na Síria, segundo a matéria da BBC "Quem são os curdos e por que são atacados pela Turquia", cerca de 300 mil pessoas desta etnia foram perseguidas pelo governo desde 1960, tendo sua cidadania negada, seus direitos reduzidos e suas terras confiscadas e redistribuídas em uma "tentativa de 'arabizar' as regiões curdas".
Com os protestos pacíficos da Primavera Árabe (2011), que desembocaram na guerra civil na Síria, os curdos se engajaram novamente em sua luta por independência – o que culminou no domínio de boa parte do norte do país. Esse domínio acendeu uma luz vermelha para a Turquia, que também busca conter esses insurgentes, com o objetivo de impedir que esse grupo minoritário cresça e atinja, enfim, sua independência, tanto em território sírio, quanto em território turco.
Com a retirada das tropas americanas da fronteira entre a Turquia e Síria pelo então presidente Donald Trump em outubro de 2019, que tinham como objetivo amortecer embates entre as tropas turcas e as milícias curdas, as ofensivas tendem a ficar mais intensas e a possibilidade de mais sangue curdo ser derramado é enorme. Ainda levando em consideração esse contexto, apesar de tentativas de negociações que buscavam a autonomia do povo curdo, o presidente sírio Bashar al-Assad disse que retomaria "cada centímetro do território sírio", seja usando o diálogo, ou a força.
É um povo marcado pela luta. Há mais de cem anos lutam para terem sua cultura, costumes e, acima de tudo, humanidade reconhecidos. Há mais de cem anos, também, existe a tentativa de apagar seus costumes, ideais e identidade. No mundo, fala-se pouco dos curdos, às vezes confundindo-os até com terroristas que tentam tomar algo que não é deles. E a raiz desse preconceito é a falta de informação e de narrativas que tenham o povo curdo como protagonistas, para que todos possam conhecer sua cultura, sua luta e sua voz.
A série "The Gift" e a representatividade curda
A série "The Gift" (em português, "O Segredo do Templo"), produzida pela Netflix, é extremamente importante para dar visibilidade à cultura curda antiga. Na história, Atiye, uma jovem artista que vive uma vida confortável em Istambul, descobre, em meio a vários acontecimentos sobrenaturais que dão o tom da série, sua ascendência curda e começa a se conectar com sua espiritualidade e com seu dom – daí o nome americano da série, já que "the gift" pode ser traduzido como "o dom" para o português.
Conforme vai compreendendo melhor as experiências que está vivenciando, Atiye descobre que, em tempos remotos, pessoas de sua linhagem e ascendência eram demonizadas e ligadas às práticas de bruxaria. A maneira como a sociedade da época lidava com as denúncias era condenando os acusados à fogueira em praça pública. Aqui cabe uma análise em paralelo com a nossa própria realidade: há muito tempo os curdos são perseguidos e têm sua liberdade religiosa e cultural cerceada por mecanismos de poder que procuram realizar o apagamento social dessa etnia.
Além disso, podemos perceber que a série também resgata muito da estética curda antiga, com suas indumentárias e penteados característicos. Essa recriação também ajuda a resgatar muitos dos costumes que existiam entre o povo curdo, já que a cultura não está apenas no comportamento, mas em todas as expressões de um povo.
Arte, estética e sua importância para cultura
Como já decorrido neste texto, o audiovisual tem um poder enorme de trazer protagonismo. Mas isso não se limita apenas ao audiovisual em si: a arte – independentemente da sua forma – consegue trazer à tona os sentimentos do eu lírico e fazer com que essa maneira de se sentir seja acessada por um interlocutor.
Não somente isso, mas a arte também tem o poder de causar reflexão no sujeito. Segundo a fala do Professor Rogério Almeida, durante a aula "Arte, estética e educação", transmitida pelo YouTube em 20 de outubro de 2021:
"A arte contribui bastante para colocar em xeque e em dúvida determinados dogmas. Por isso que a arte muitas vezes é combatida pela religião e é por isso que a extrema direita também não gosta das manifestações artísticas, porque elas parecem provocadoras. E de fato são, uma vez que elas podem desestabilizar os sentidos postos."
No fim, a arte tem um grande poder de causar mudança na sociedade e de fazer com que o sujeito reflita sobre o modus operandi de tudo que o cerca e pergunte: será que essa é realmente a única maneira de fazer as coisas?
Transportando esse pensamento para o nosso objeto de estudo, o povo e a cultura curda, podemos perceber como é importante que, cada vez mais, tenhamos pessoas produzindo arte sobre esse contexto de opressão. É dessa maneira que, aos poucos, o mundo terá acesso ao imaginário do povo curdo (como folclore, religião e simbologias) e aos sistemas de opressão que os cercam (cerceamento de liberdade, guerras e perseguições).
Há séculos, os pensadores tentam definir a arte, mas muitos estudiosos já descartaram essa possibilidade. As manifestações artísticas são muito abrangentes e quase impossíveis de serem colocadas em uma caixa de definições. Quando levamos, por exemplo, essas discussões para o campo dos conceitos de beleza, entramos em uma área abarrotada de subjetividades. Além disso, a arte é um processo sensorial multicanal – não é apenas o olhar que pode nos dizer se aquilo que observamos é arte, mas a sensação que determinada obra nos causa e a reflexão que vem em seguida. Essas sensações são muitas: alegria, tristeza, asco, deleite, medo – e muitas outras possibilidades que existem no campo sensorial humano.
Em uma análise ainda mais intimista, Almeida também traz em sua fala que:
"Podemos pensar a vida, também, como uma obra de arte – uma estetização das questões ligadas à vida, ligadas ao modo como nós vivemos. Então, a vida como obra de arte inscreve-se como afirmação. É a ideia de que a arte pode potencializar a vida. Pode ajudar a afirmar a vida – como forma de existência e como forma de re-existência."
Quando entendemos a vida como obra de arte, percebemos também a possibilidade da vida ser um instrumento com capacidade de gerar a mudança dentro do nosso contexto social. Levando esse conceito para a luta e resistência curda, percebemos também como as trajetórias e narrativas desse povo têm importância enquanto contribuição para o entendimento de atitudes a favor da liberdade e da proteção de heranças culturais.
Como diz Paul Ricoeur, "compreender é compreender-se diante da obra". Por isso, ao olharmos para a vida e luta dos curdos em favor da sua identidade e liberdade, precisamos enxergar qual é o nosso papel e quais as atitudes que podemos tomar enquanto sociedade para garantir a existência de uma cultura, que é riquíssima em símbolos e possibilidades.
O poema "É preciso agir", de Bertold Brecht (1898 - 1956), diz:
"Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso / Eu não era negro / Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu também não era operário / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável / Depois agarraram uns desempregados / Mas como tenho meu emprego / Também não me importei / Agora estão me levando / Mas já é tarde. / Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo."
A reflexão contida neste texto de Brecht precisa ser trazida à tona: há uma necessidade de reconhecermos como é problemática a animalização de certos povos e etnias. Os curdos, em diversos contextos, perderam os seus indicadores de humanidade: não são livres para expressarem sua cultura, religião e se comportarem segundo seus costumes. E isso é um atentado à humanidade no geral. Precisamos democratizar a existência plena e, principalmente, entendermos que a liberdade precisa existir em todos os contextos.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.