Por Juliana Scaffa*
Na última semana (01/02/2022), a organização de direitos humanos Anistia Internacional tornou público um relatório elaborado pela instituição afirmando que as políticas israelenses para os palestinos são classificadas como apartheid. A reação de Israel foi a de desqualificar o documento, considerando-o “falso, tendencioso e anti-semita”. Outra declaração veio do Ministro de Relações Exteriores de Israel, Yair Lapid: “Detesto usar o argumento de que se Israel não fosse um Estado judeu, ninguém na Anistia [Internacional] iria ousar argumentar contra, mas nesse caso, não há outra possibilidade”. A organização afirma, entretanto, que desde outubro do ano passado busca oportunidades de diálogo com a pasta de Lapid, sem sucesso. Mas, fica a pergunta: no que se baseiam as conclusões do relatório?
O apartheid é considerado um crime contra a humanidade e possui mecanismos para sua definição no direito internacional, como a Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid, reconhecida pela ONU, em 1973, e o Estatuto de Roma, de 1988, cujo artigo 7º classifica o apartheid como crime contra a humanidade. Por ser considerado como tal, é imprescritível e há critérios para sua definição: “ato desumano praticado no contexto de um regime institucionalizado de opressão e domínio sistemático de um grupo racial sobre um ou outros grupos nacionais e com a intenção de manter esse regime”. Em relatório emitido após quatro anos de pesquisa, a Anistia Internacional separa uma seção inteira sobre o quesito “opressão e dominação” e outra sobre “atos desumanos”, analisando a postura de Israel frente a palestinos e concluindo que ambos os critérios para definição de crime de apartheid estão presentes:
“A totalidade das leis do regime, políticas e práticas descritas neste relatório demonstram que Israel estabeleceu e manteve um regime institucionalizado de opressão e dominação da população palestina para o benefício de israelenses judeus – um sistema de apartheid – onde quer que tenha exercido controle sobre vidas palestinas desde 1948. O relatório concluiu que o Estado de Israel considera e trata palestinos como um grupo racial não-judeu inferior. A segregação é conduzida de uma forma sistemática e altamente institucionalizada através de leis, políticas e práticas, todas com a intenção de evitar que palestinos demandem e desfrutem de direitos iguais aos de israelenses judeus no território de Israel e dentro dos Territórios Palestinos Ocupados, e, portanto, têm a intenção de oprimir e dominar o povo palestino. Isso tem sido implementado por um regime legal que controle (negando) os direitos de refugiados palestinos residindo fora de Israel e dos Territórios Palestinos Ocupados de retornar às suas casas.” Agnès Callamard, Secretaria Geral da Anistia Internacional (tradução livre).
Entre as violações apontadas estão a fragmentação do território palestino para fins de controle e dominação sobre a população; segregação e espoliação de terras e propriedades; privação generalizada de direitos, como o de livre circulação e alocação discriminatória de serviços e recursos ; negação de liberdades e perseguição; prática de detenção arbitrária e tortura. Tendo em vista o vasto e grave relato de violações de direitos humanos, vê-se que a motivação para o lançamento do documento não é o fato de Israel se considerar um estado judeu, mas sim a necessidade de documentar e tornar público o retrato atual das políticas de estado que vêm se desenhando desde 1948, ano da instituição do Estado de Israel. Ilustrado abaixo, está o plano original para o território, aprovado na Resolução 181 da ONU em 1947, onde mostra em azul 55% do território da Palestina Histórica destinado ao controle das populações judaicas e em verde 45% do território para controle das populações árabes, sendo Jerusalém (em laranja) sob controle internacional.
Tal plano foi a resposta aos clamores de autodeterminação dos sionistas, já partilhando o território sem permitir continuidade e unidade territoriais sobre as faixas de terra destinadas ao controle palestino. De todo modo, a Resolução 181 nunca foi de fato implementada. Com a instituição de Israel no ano seguinte, houve a expulsão de centenas de milhares de palestinos de suas casas e destruição de mais de 700 vilarejos. Desde então, a expansão do controle israelense sobre o território destinado ao Estado árabe nunca parou, colonizando-o. Com a assinatura dos Acordos de Oslo em 1995 desenhou-se o primeiro acordo de paz entre as partes. Apesar do pouco avanço em termos de manutenção da paz, ele foi relevante para aprofundar a fragmentação territorial, que tomou nova forma ao dividir a Cisjordânia (West Bank, conforme imagem abaixo) em três áreas: a área A - controle pela Autoridade Palestina, a área B - controle civil pela Autoridade Palestina e militar pelo Exército de Israel e a área C - controle seria entregue à Autoridade Palestina, o que nunca ocorreu, estabelecendo-se controle israelense.
Em 2017, as Nações Unidas já apontava em relatório que Israel “é culpado do crime de apartheid”, sofrendo retaliações semelhantes às que hoje são aplicadas às organizações de direitos humanos que concluíram o mesmo: desqualificação e acusações de antissemitismo. A conclusão da Anistia Internacional corrobora o posicionamento da ONG de direitos humanos israelense B’Tselem, que em janeiro de 2021 afirmou que “O regime israelense sobre o território que controla (território soberano israelense, leste de Jerusalém e a Faixa de Gaza) é de apartheid.”. Já em abril, a Human Rights Watch (HRW) foi a primeira organização não governamental de peso a aplicar o termo “apartheid”, em relatório acusando Israel não só de cometer apartheid contra palestinos, como também perseguição. Dentro de Israel, outras organizações de defesa de direitos humanos apoiaram a publicação da Anistia Internacional. Apesar das profundas críticas e denúncias já vocalizadas por palestinos ao longo dos anos, o peso de declarações como as de “apartheid” vindo de organizações internacionais independentes traz vozes de alta credibilidade sobre a disputa entre Israel e Palestina, documentando violações de direitos humanos. Tanto a Anistia quanto a HRW emitiram recomendações ao Estado de Israel, sendo que alguns de seus pontos em comum são o fim da opressão sistêmica contra palestinos e de políticas discriminatórias; concessão de direitos e tratamentos iguais a palestinos e israelenses; encerramento da expansão de assentamentos em territórios palestinos ocupados; garantia de acesso à infraestrutura básica; além do fim ao bloqueio à Faixa de Gaza.
Enquanto a principal retórica oficial do Estado de Israel é acusar tais organizações de antissemitismo, a conjuntua dentro do país enfraquece o argumento: a ordem estabelecida foi desenhada e é perpetuada para manutenção hierárquica de grupos etnico-raciais, privilegiando nacionais israelenses de origem judaica. Com a publicação de pesquisas de respeitadas organizações de defesa de direitos humanos sobre esse cenário, jogou-se luz sobre a situação enfrentada por palestinos, que sofrem violações seja no território soberano israelense, seja nos Territórios Palestinos Ocupados ou mesmo aqueles com status de refugiado, proibidos de retornar às suas casas. Projetou-se no ambiente internacional não o “conflito Israel-Palestina”, mas a crítica à força ocupante violadora de direitos. Essa mudança de paradigma de representação do estado estimula uma tomada de posição de resgate às bases de identidade estatal e busca por relegitimação frente à comunidade internacional, fazendo ressurgir a propaganda democrática e a referência ao Estado ligado à etnicidade judaica. Embora as evidências e denúncias da conduta israelense, o país ainda conta com alianças que “blindam” suas críticas, sedo a mais evidente a dos Estados Unidos, e agora com a movimentação de estabelecimento de laços diplomáticos com países árabes, especialmente no Golfo. Tais movimentos encobrem, no mínimo, a discriminação sistêmica e, na pior das hipóteses, o apartheid.
*Juliana Scaffa é pós-graduanda em Política e Sociedade pelo IESP-UERJ, mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.