OPINIÃO

Reflexões sobre a Estratégia Brasileira de Transformação Digital 2022-2026 – Por João Cassino

Análise parte de uma perspectiva de esquerda

Créditos: Agência Brasil
Escrito en OPINIÃO el

O Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) publicou a atualização da Estratégia Brasileira de Transformação Digital (e-Digital) para o ciclo 2022-2026, por meio da Portaria MCTI nº 6.543, de 16 de novembro de 2022. O objetivo deste artigo é fazer uma breve análise da e-Digital, com um olhar do ponto de vista de esquerda do espectro político, apontando itens que devem ser aperfeiçoados.

1. Sobre o conceito de Transformação Digital

Primeiramente, façamos uma consideração sobre o termo “Transformação Digital” ou “Transição Digital”, que varia dependendo do autor, mas tratam do mesmo fenômeno. Trata-se de um conceito de marketing, criado pela consultoria de tecnologia francesa Capgemini, em 2011, que aos poucos foi sendo incorporado pelas demais empresas do setor e, posteriormente, introduzido do mundo acadêmico. Se formos rigorosos, a transformação digital verdadeiramente começa na segunda metade do século XX, com o início da produção de computadores. Na década de 1990, quando a Internet começava a se popularizar, houve um forte impulso de transformação digital. Agora, na década de 2020, utiliza-se o termo para englobar uma série de produtos e serviços muito diferentes entre si, tais como computação em nuvem, Internet das Coisas (IoT), Inteligência Artificial, sistemas móveis, redes sociais, Big Data e segurança da informação, dentre várias outras possibilidades. Ou seja, “transformação digital” é um nome genérico para venda de um conjunto de produtos.

Portanto, a primeira crítica à Estratégia Brasileira de Transformação Digital (e-Digital) é que ela assume o discurso das empresas privadas como uma verdade única, sem fazer um contraponto. Espera-se que, no novo Governo Lula, tenhamos uma outra atualização do documento, que priorize o interesse nacional, a soberania brasileira e beneficie a população mais pobre, não sendo apenas um discurso cujo objetivo real seja promover fornecedores privados no setor governamental.

2. Eixos habilitadores

A e-Digital 2022 é construída com base em cinco eixos habilitadores, que seriam estruturantes para que a Transformação Digital possa acontecer: A. Infraestrutura e acesso às TIC; B. Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação; C. Confiança no ambiente digital; D. Educação e capacitação profissional; e E. Dimensão internacional.

O eixo A - Infraestrutura e acesso às TIC propõe ampliar as redes de dados em todos os municípios brasileiros, expandir banda larga nas áreas urbana e rural, e disseminar iniciativas de inclusão digital. Na sequência, o documento faz uma boa análise da infraestrutura de telecomunicações no Brasil. Porém, esquece de um problema fundamental: um dos principais motivos para exclusão digital é a falta de recursos financeiros da população mais pobre para comprar serviços das operadoras. Apesar de haver um uso intensivo de telefonia celular, inclusive para acesso à Internet, mais de 60% da população utiliza celular pré-pago, com franquia muito restrita, o que, na prática, cria duas categorias de internautas: limitados (com tendência a uso direcionado a aplicativos de franquia livre, como Facebook e WhatsApp) e ilimitados (com acesso integral aos serviços da rede). Apesar de não ferir diretamente o Marco Civil da Internet, o privilégio de acesso a apps selecionados aparenta ser uma forma de ludibriar o princípio de neutralidade de rede previsto em lei. O “beneficio a mais” ofertado pelas operadoras aos seus clientes resultam em fidelização forçada. Não basta, como quer a e-Digital, “ampliar o uso de Internet ‘com economicidade’”. É preciso garantir que todos e todas tenham acesso de qualidade e sem barreiras.

O eixo B - Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação objetiva estimular o desenvolvimento de novas tecnologias, viabilizando a promoção da pesquisa, desenvolvimento e inovação, aprimorando marcos legais e utilizando o poder de compra do Estado para encomendas de desenvolvimento de tecnologias digitais. O texto, no entanto, não aprofunda em como fazer para que a P&D nacional seja de fato incorporada nas empresas, uma vez que a quase totalidade desses produtos e serviços são importadas. É verdade que a superação da condição de mero consumidor das tecnologias estrangeiras se dará pelo investimento em soluções locais. Porém, há nichos que podem se beneficiar mais do que outros com o desenvolvimento regional. São exemplos aplicativos e construção de redes para se combater a precarização do trabalho com base em plataformas digitais. Também seria importante direcionar as pesquisas para potencialização de empreendimentos solidários, de propriedade coletiva, e não somente de startups privadas. O poder de compra do Estado pode ser usado não só na aquisição das tecnologias, mas também na obtenção de produtos/serviços que são o núcleo do negócio solidário digital. Um exemplo seria um app para aquisição de merenda escolar direto do produtor rural, eliminando intermediários. Outro ponto importante é que toda vez que há investimento estatal na iniciativa privada, tem-se o risco daquele negócio ser vendido a grupos estrangeiros e perder-se a tão almejada nacionalização. Quando o aporte é feito para cooperativas ou para empresas estatais, o risco diminui.

O eixo C - Confiança no ambiente digital pretende assegurar um ambiente seguro, com mecanismo de proteção de direitos, a cooperação entre entes governamentais e setor privado, e instrumentos de cooperação internacional. Este é um ponto central e um erro grave da estratégia e-Digital. Quando o documento exemplifica o que é segurança digital, fala apenas da necessidade de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados e o combate a crackers (“hackers do mal”), que fazem ataques como fraude, roubo de identidade, invasão de privacidade e venda de dados para terceiros. A estratégia é omissa no que diz respeito às medidas de proteção de dados e de segurança da informação em relação aos parceiros privados. Quando um governo utiliza serviços como computação em nuvem, transfere-se o dado da administração pública para um centro de dados de uma empresa privada, geralmente fora do Brasil. Exceto pelos limites contratuais, que são extremamente frágeis e nem sempre verificáveis, não há quase nada que se possa fazer em caso de contencioso com data centers que estejam em solo estrangeiro, regidos pela legislação de outro país. O mesmo vale para softwares que não sejam auditáveis. O ideal é que sejam utilizados softwares livres e de código aberto, que garantem plena transparência ao cliente. Segredos industriais, pesquisas em fase de desenvolvimento, documentos da diplomacia, documentos classificados do Estado, informações sensíveis dos cidadãos e do funcionalismo público, inclusive do setor policial e de defesa – são todos potenciais alvos de espionagem privada. É urgente criar uma rede federada de data centers nacionais, integrando as estatais de TICs, como Serpro, Dataprev, BB Tecnologia e Serviços, universidade públicas federais, dentre outras, para se criar ambientes verdadeiramente seguros e controlados.

O eixo D - Educação e capacitação profissional pretende formar uma sociedade digital, preparando-a para o futuro. Para isso, quer conectar escolas, incorporar tecnologias nas práticas escolares, reforçar algumas das disciplinas mais adequadas ao mundo digital (como matemática) e aprimorar a formação de professores. Alertemos para dois riscos na implantação de políticas públicas deste tipo. A primeira é a compra de pacotes de serviços prontos que tiram do professor a autonomia necessária para atender as peculiaridades dos alunos e de suas realidades locais. A segunda é fazer do Estado um patrocinador de formação para disseminação de produtos privados. A e-Digital cita a formação educacional em  “economia digital com foco no empreendedorismo”. Na verdade, a educação deve ser prioritariamente para a formação cidadã, para a ética, para a construção de uma sociedade mais justa e de proteção dos direitos humanos na rede.

O eixo E. Dimensão internacional quer fortalecer a liderança brasileira nos fóruns globais relativos a temas digitais, estimular a competitividade e a presença das empresas brasileiras no exterior e promover a integração regional em economia digital. Como crítica, apenas é importante lembrar que fóruns internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), são arenas de lobbies e de disputa de interesses comerciais e geopolíticos. O Brasil deve disputá-los, mas ter a consciência de que pode sair prejudicado de negociações com resultados que contrariem o interesse nacional.

3. Eixos de transformação digital

Além dos eixos habilitadores, que são transversais, a e-Digital tem outros três eixos que tratam diretamente da Transformação Digital da economia: F1. Economia baseada em dados; F2. Um mundo de dispositivos conectados; e F3. Novos modelos de negócios. Por fim, tem um quarto eixo focado em G. Cidadania e Governo.

O eixo F1. Economia baseada em dados é a pior parte do documento. Apesar de mostrar preocupação com o controle estatal e com a redução de riscos no uso indevido de dados, a e-Digital simplesmente ignora um ponto que é da maior relevância: o viés discriminatório dos algoritmos. Há incontáveis exemplos no mundo de uso de bases de dados e de inteligência artificial que prejudicam – com ou sem dolo – grupos minoritários como população negra ou etnias perseguidas, comunidade LGBTQIA+, mulheres, minorias religiosas, ativistas políticos e ambientais. A e-Digital é claramente entusiasta de mais abertura de dados pelo Brasil, o que interessa mais às corporações e menos ao cidadão brasileiro. Não é possível, por exemplo, sucumbir às pressões do setor de saúde para compartilhamento de dados de pacientes. Isso pode gerar danos irreparáveis às pessoas com enfermidades, o que viola a Constituição nacional. Devemos ser severamente críticos à ação estratégica da e-Digital sobre portabilidade de dados: “Estimular a inovação aberta, a portabilidade de dados e o open data como ferramentas de acesso a tecnologias, visando ao aumento de competitividade das empresas”. Que fique claro que “abertura e portabilidade dados” é algo totalmente diferente de uma política de “dados abertos”. A primeira é o compartilhamento de informações pessoais por empresas de mesmo setor para vantagens comerciais; a segunda trata da transparência das informações públicas. Por último, o eixo F1 até fala bastante das desvantagens do Brasil ser frágil em data centers, mas é extremamento tímido nas propostas de ampliação. Precisamos investir pesadamente na ampliação de empresas deste tipo em solo nacional.

O eixo F2. Um mundo de dispositivos conectados aborda como estimular a informatização, o dinamismo, a produtividade e a competitividade da economia brasileira, de forma a acompanhar a economia mundial. Neste tópico, a e-Digital faz uma longa análise do setor. A exemplo do item anterior (F1), destacamos a necessidade de cuidados com direitos humanos e outros efeitos adversos, como a proliferação de reconhecimento facial por câmeras de vigilância. Em um país como o Brasil, onde a violência policial é alarmante, esse tipo de tecnologia causa apreensão. Há ativistas que defendem o banimento do reconhecimento facial, inclusive nos Estados Unidos. Falta também à e-Digital envolver estatais brasileiras no ecossistema da economia de dados. A Ceitec, por exemplo, é uma empresa fundamental para uma transição digital soberana.

O eixo F3. Novos modelos de negócios avaliarão vários setores microeconômicos, como plataformas de comércio eletrônico, plataformas de economia criativa, música, audiovisual, jogos digitais e empreendedorismo digital. Peca, mais uma vez, por ignorar a existência da economia solidária e por desconhecer a tragédia da precarização de empregos na sociedade digital. Não valoriza o papel que uma estatal como os Correios tem na logística do e-commerce brasileiro.

O último eixo, G. Cidadania e Governo, quer tornar o governo federal mais acessível à população e mais eficiente no provimento de serviços ao cidadão. Aqui vemos como propostas a oferta de serviços públicos digitais em plataforma única, os dados abertos governamentais, a interoperabilidade de bases de dados, a identificação digital e as políticas públicas baseadas em serviços preditivos. Esse último ponto é o mais preocupante. Serviços preditivos são baseados em inteligência artificial, que correlaciona informações do passado para tentar prever situações de futuro. Não podemos esquecer de exemplos como o do software Compas (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions), utilizado para ajudar os juízes norte-americanos a definirem penas para detentos após condenação. Ficou constatado que o algoritmo sugeria penas mais duras a grupos marginalizados. Se alguém é de determinada cor de pele, mora em tal bairro periférico, tem uma faixa de renda familiar baixa, dentre outras características, o sistema entendia que chance da pessoa voltar a cometer um crime era maior. Logo, recomendava cadeia por mais tempo.

CONCLUSÃO

A Estratégia Brasileira de Transformação Digital (e-Digital) para o ciclo 2022-2026 tem informações muito valiosas e boas análises, mas omite-se em pontos essenciais para uma adoção de tecnologias de forma soberana no Brasil. É um pano de fundo para justificar compras governamentais de produtos privados e desconsidera efeitos negativos de alguns desses produtos à sociedade. Não pensa nos mais pobres, exceto como consumidores de serviços públicos, mas nada propõe para melhoria de condições de vida real. É preciso melhorar muito.

PONTOS CENTRAIS DE ATENÇÃO

- Políticas públicas para incluir quem não pode pagar pelos serviços digitais;

- Defesa da neutralidade na rede;

- Fomento da Pesquisa & Desenvolvimento para superação da precarização do trabalho baseado em plataformas digitais e também para potencialização de empreendimentos solidários;

- Criação de mecanismos de defesa de dados contra parceiros privados;

- Estabelecimento urgente de uma rede federada de data centers em solo nacional;

- Formação educacional ética em TICs e de defesa dos direitos humanos;

- Posição crítica em relação a abertura e portabilidade de dados;

- Cautela máxima no compartilhamento de dados de saúde;

- Avaliação sobre banimento de reconhecimento facial por câmeras de segurança e outras tecnologias de vigilância intrusiva;

- Atenção a efeitos negativos e inesperados de serviços preditivos.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.