A verdade é que quando se é um judeu negro na América Latina, em especial no Brasil, as pessoas tendem a não o perceber como judeu e só irão reconhecê-lo como judeu em caso de autoidentificação. Elas só vão saber ou imaginar que você seja judeu se você se posicionar de fato, se você falar que é judeu. A pessoa judia negra tende a ouvir comentários antissemitas muito violentos, porque as pessoas nem imaginam que ela seja judia.
Era um dia corriqueiro da vida universitária e, para um seminário em grupo, me reuni com minhas colegas. Neste ambiente, nos conhecíamos pouco, pois cursávamos apenas uma ou duas disciplinas juntas. Em certo momento, uma das colegas, por alguma razão que não me recordo, iniciou uma discussão sobre Israel e as frases que escutei foram: “Israel deve ser eliminada do Oriente Médio”, “Sionismo é colonialismo europeu” e “Eles falam tanto que são vítimas do nazismo, mas promovem atos parecidos através do sionismo”. Diante daquelas frases tão carregadas de ódio, me esforcei para rebatê-las, mas aquela chuva de violência me causou a sensação de que estava diante de pessoas não dispostas a superar o seu ódio.
Todo governo é passível de ser criticado e eu, por exemplo, discordo do atual governo do Irã e acho que ele deve sofrer sanções internacionais, por conta das inúmeras violações de direitos humanos que tem cometido e principalmente devido à violência contra a mulher, atualmente normalizada naquele país. De toda maneira, não utilizo frases como as que ouvi sobre Israel por entender que são frases advindas de um discurso de ódio, por entender que excedem uma crítica ao governo e são um ato de violência com a população do Irã.
Sempre que uma pessoa se manifesta contra a existência de um país, esta pessoa está simultaneamente dizendo que esse povo não merece existir, que eles podem sofrer alguma violência ou genocídio.
Aquelas frases que ouvi não eram apenas críticas às políticas do governo de Israel; eram expressões de ódio contra seu povo e sua presença. Admito que se façam críticas ao governo israelense, da mesma maneira que posso dizer que nos últimos quatro anos o governo brasileiro não me representou; porém, caso houvesse presenciado alguém dizendo que “O Brasil deve ser eliminado”, teria me levantado contra essas palavras. O povo brasileiro tem uma cultura, uma história e contribuições que merecem ser respeitadas. Além disso, o Brasil é uma democracia com alternância de poder, da mesma forma que Israel. O fato de um país possuir internamente graves problemas e conflitos de direitos civis e humanos é justamente um desafio a ser enfrentado, para sua superação, e não para a eliminação daquele país.
Devemos lembrar que metade da população judaica de Israel é de judeus orientais, expulsos de seus países de origem, especialmente os árabes, em um processo muito violento e criminoso de dilapidação e mortes. Espero que o conflito Israel-Palestina seja superado com diplomacia para que, no final, meu povo judeu e o povo palestino tenham um lugar para chamar de seu. Obviamente, a fragilidade é maior do lado palestino, o que decorreu de razões circunstanciais, pela vitória de Israel nas três grandes guerras árabe-israelenses; mas o status atual do palestino não é decorrência de nenhum objetivo colonialista. É necessário um olhar empático para a história dos judeus e para a história dos palestinos. Pelo que posso observar o terrorismo promovido pelo Hamas não deu nenhuma contribuição. Com certeza a única saída do conflito será pelas vias pacíficas.
Após aquela infeliz reunião com minhas colegas, voltei para casa com um sentimento de revolta e tristeza, pensando em como poderia ter melhor respondido àquelas agressões contra Israel. Tive dificuldade para dormir naquela noite, no outro dia dores de estômago, uma sensação de náusea quando eu me lembrava, uma sensação de cansaço me acompanhava durante todo o dia, uma sensação de pressão na nuca e nos ombros, era nítido que eu não estava me sentindo bem fisicamente, o que durou por alguns dias.
Então, conversei com uma amiga médica, para contar como estava me sentindo e perguntar o que ela recomendava que eu fizesse. Ela me questionou o que aconteceu antes de começarem esses sintomas e eu contei a ela tudo o que eu ouvi e como me senti agredida por aquelas frases contra Israel. Minha amiga me explicou que possivelmente eu estivesse passando por um quadro de estresse em razão de uma situação traumática, uma violência que eu havia presenciado. Fiz exames e de fato a situação foi se desenhando como um quadro de estresse, que felizmente passou.
Ao refletir sobre como eu havia me sentido, eu entendi que eu havia sido exposta a um discurso de ódio. Aquelas frases feriram a minha identidade judaica, a minha dignidade. Sou uma judia brasileira israelita, toda a minha formação judaica foi construída simultaneamente com a minha relação com a cultura israelense. Mesmo que eu não more em Israel, eu me sinto parte da nação israelense, da mesma forma que eu sou parte do povo judeu.
Estava claro para mim que eu havia sido vítima de um discurso de ódio, vítima de antissionismo. Quando alguém ofende a cultura israelense ou quando alguém prega a destruição de Israel, eu sinto um ataque ao meu ser e estar no mundo, uma ameaça à minha existência. Isso gerou em mim um estresse físico e, simultaneamente, um despertar para o risco que esse discurso de ódio representa.
E o que é o discurso de ódio? É um discurso que expressa uma crítica ou discriminação direcionada a um grupo específico, definido por algum traço identitário em comum como cor, orientação sexual, identidade de gênero, religião, nacionalidade, etc. Podemos exemplificar o que é discurso de ódio com frases como “O gay é uma praga que deveria sumir”, “Esse muçulmano pode ser um terrorista”, ou “De onde vem o dinheiro desse negro?”. Esse tipo de discurso visa à desvalorização de um grupo e, seja proferido para várias pessoas ou apenas para uma pessoa, desmoraliza a identidade desse grupo.
Judeu, Israelense e Israelita
Acredito que para dar continuidade a este texto e para que o leitor compreenda melhor a judeidade e a relação dos judeus com Israel é importante explicar os significados de judeu, israelense e israelita.
Os judeus formam um povo, seja os que nasceram do útero de uma mulher judia (nascida ou convertida) ou se converteram individualmente ao Judaísmo. Por isso a conversão ao Judaísmo é um processo que envolve muito estudo e aprovação por um tribunal rabínico, não é apenas o início de uma prática religiosa; é a aceitação da entrada da pessoa na tribo, de cerca de 14 milhões e meio de judeus espalhados pelo mundo. Todos aqueles judeus que veem em Israel o centro do Judaísmo ou como parte da sua identidade judaica são também considerados israelitas.
Já israelense é todo aquele que tem cidadania de Israel e nem todo israelense é judeu, pois é um país multiétnico: quase 75% da população de Israel é de judeus (brancos, negros e asiáticos), 18% de muçulmanos, 2% de cristãos, menos de 2% de drusos e aproximadamente 4% de outras práticas religiosas ou sem religião*.
Para compreender a multietnicidade de Israel e de uma vez por todas desconstruir o equívoco de que todo judeu israelense é branco, precisamos compreender que os judeus que vivem em Israel têm as mais diversas origens étnicas: são judeus vindo da Etiópia, da Tunísia, do Egito, do Iêmen, do Iraque, da Índia, dos mais diversos países europeus, africanos, asiáticos e de países da América Latina.
De uma forma geral, a maioria das famílias judias que escolheram Israel como destino vieram de países de maioria cristã ou muçulmana, boa parte delas carregam histórias de fugas, de perseguições violentas e genocídios, e outras buscaram por um país onde a sua vida judaica pode ser praticada de forma naturalizada e respeitada.
Sionismo não pode ser reduzido a uma ideologia de dominação e "colonialismo europeu". A violência antissionista aceita como justificada em razão de combate ao imperialismo ocidental deve ser vista como o é, algo injustificável, ao apagar o direito legítimo de autodeterminação do povo judeu, de construção de um Estado soberano próprio, o Estado de Israel.
Sou judia negra israelita sionista e tenho o direito de viver sem receber o ódio antissionista. E, como humanista e ambientalista, não sou indiferente à dor humana e ao processo lamentável de destruição do planeta. Humildemente, faço a minha parte na construção de Tikun Olam.
*“Israel’s Independence Day 2019”, relatório do Israel Central Bureau of Statistics, https://www.cbs.gov.il/he/mediarelease/DocLib/2019/134/11_19_134b.pdf, acessado em 15/11/2022.
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