Em geral pessoas brancas de classe média e heterossexuais têm dificuldades de reconhecer seus privilégios. Certa vez ouvi de um gringo que veio ao Brasil que achou estranho no avião não ter negros no voo. Tinha lido que no país mais de 50% da população era negra. Passou pelo Duty free, alfândega, e quando chegou ao banheiro viu o funcionário da limpeza negro e assim foi reconhecendo o racismo estrutural da sociedade brasileira.
O Brasil só acabou com a escravidão em 1888 e os escravizados foram abandonados a própria sorte, sem emprego, sem salário, sem terras. Houve resistência, os quilombos, Zumbi dos Palmares, mas sempre quiseram esconder essa história e dizer que a Princesa Isabel foi quem libertou os escravizados.
Hoje os principais moradores das favelas e periferias são afrodescendentes, a maioria dos encarcerados são negros. A maioria dos mortos pela polícia: jovens negros. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, jovens negros são vítimas de 80% das mortes violentas no país. Quantas mães das quebradas desse país têm que enterrar seus filhos mortos por balas que encontraram os corpos de seus filhos? Ou ainda quantos casos até hoje, em 2022, de pessoas que sequer podem trabalhar e voltar pra casa tranquilas porque são abordadas violentamente ou morrem com tiros enquanto dirigiam seu carro, como foi o caso do músico Evaldo Rosa dos Santos.
Hoje a maioria das empregadas domésticas são mulheres negras. Enquanto feministas brancas lutavam pra trabalhar fora, a mulher negra era escravizada. E se formos falar das mulheres, elas enfrentam jornadas duplas, em geral recebem salários menores que os homens para a mesma função. Quando o assunto é maternidade sofrem o abandono parental, criam seus filhos sozinhas. Para o homem o aborto é permitido. Some e acabou. A mãe que se vire. E se no desespero recorre a um remédio abortivo arrisca perder sua própria vida. Elas lutam pela sua existência diariamente.
Todos os dias temos casos de feminicídio em algum lugar desse país. São homens que não aceitam o fim dos términos de relacionamentos e matam. Dados divulgados pelo Atlas da Violência mostram um número assustador: 50.056 mulheres foram assassinadas no Brasil num período de dez anos, entre 2009 e 2019.
E ainda às mulheres restam o medo de serem estupradas. Não podemos sequer ficar bêbadas em paz, voltar pra casa sossegadas num Uber. E ainda há quem defenda Robinho, condenado por estupro, mesmo ele admitindo em um áudio que a vítima estava completamente embriagada e não conseguia nem ficar em pé. É pedagógico, aceitem.
Se formos falar das pessoas LGBTQIPA+, temos que entender que essas pessoas lutam pra viver. A lgbtfobia mata. O Brasil é o país em que mais se matou pessoas trans em 2021, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra). Foram 140 assassinatos. E elas não podem sequer viver seus afetos e suas sexualidades sem serem respeitadas. Quantos conhecidos já lhe apresentaram suas namoradas trans? No caso das travestis e mulheres trans muitas vezes a única opção de trabalho é a prostituição. Há quem se incomode com a orientação sexual do outro, o que não lhe diz qualquer respeito.
E ainda temos os povos originários, os indígenas do país, sempre expulsos e mortos pelos "colonizadores". Hoje morrem de desnutrição e doenças levadas pela mineração ilegal incentivada por esse governo genocida e abandonados. Veem as florestas serem desmatadas e os rios poluídos, e suas terras invadidas e roubadas há mais de 500 anos.
E ainda podemos falar das pessoas com deficiência, muitos não conseguem ter uma vida funcional e vivem nos faróis das grandes cidades pedindo por um prato de comida.
Vejam a foto dos desembargadores do TJ de São Paulo no início deste texto. Quase todos homens brancos, pouquíssimas mulheres, provavelmente filhos de homens do judiciário, estudaram nos melhores colégios. Qual será o repertório de um homem como esse para julgar o desespero de uma mãe que furtou um miojo pra alimentar o filho? Ou um adolescente da favela que acabou sendo aviãozinho do tráfico pra tentar ganhar algum dinheiro? Enquanto a mãe trabalhava limpando alguma casa numa área nobre da cidade, saindo bem cedo e voltando à noite. A criança cresce sem creche, sem escola de qualidade, esporte, cultura e lazer. Qual meritocracia tem aí?
Portanto não se trata de "identitarismos". A "classe trabalhadora" do país não é homogênea. É diversa e tem todas essas interseccionalidades. Não reconhecer essa diversidade de pautas, de vivências, de lutas, que são estruturantes no Brasil é covardia. É manter privilégios. A luta é contra o racismo, o machismo, a misoginia, a lgbtfobia, mas também pela democracia, por direitos, pelo SUS, por educação, contra as privatizações. É soma, não censura.