Se se entende que toda transgressão contra a propriedade, sem entrar em distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada? Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade? Não lesiono com isso, portanto, seu direito de propriedade? [1]
Karl Marx
Dez anos depois de sua aprovação em 2012, está previsto que a Lei de Cotas deverá passar, este ano de 2022, por uma primeira revisão. Não é gratuito, nem uma distração, que tenha se aberto um debate sobre os “perigos” do “racismo reverso” no Brasil: supostamente, um racismo de negros contra brancos. Argumenta-se que as cotas raciais alimentam o racismo, acirram a competição entre trabalhadores e dividem o povo.
Não são bons argumentos. Não é a luta contra o racismo que explica a raiva, exasperação e fúria dos racistas. Não é a luta contra o racismo que ameaça dividir o povo, mas o racismo. A luta por cotas, como a luta por qualquer direito, provoca uma reação: a luta social para mudar o mundo é assim. Quando os sem-terra ocupam fazendas pela reforma agrária, os latifundiários os acusam de inflamarem a violência. A violência é a preservação dos latifúndios.
Todos os direitos são limitados por outros direitos. Sem justiça, nunca haverá paz. Responsabilizar os explorados e oprimidos em luta pela violência dos exploradores não faz sentido. Pretender que a luta por cotas para negros alimenta o racismo equivale a dizer que a luta pela legalização do aborto é responsável pelo machismo, ou que a luta pela criminalização das queimadas na Amazônia incendiou a invasão das terras indígenas.
As políticas afirmativas de cotas de acesso para negros corrigem, parcialmente, um obstáculo que só é invisível para os que minimizam o racismo. Sabemos que os inscritos no vestibular de acesso às universidades públicas têm somente igualdade de condições formais, portanto, abstratas, porque a seleção será decidida favorecendo os que tiveram melhores condições de preparação. Entre os mais desfavorecidos estão os negros.
O que se está defendendo contra as cotas, portanto, não é acesso universal, mas um critério de seleção, o meritocrático. Este critério é mais justo do que o racionamento pelo preço das mensalidades – a seleção determinada pelas diferenças de classe – mas, isso não faz dele um critério igualitarista. Igualitarista é tratar de forma desigual os desiguais, favorecendo os mais explorados ou oprimidos.
Opor às cotas a bandeira do acesso livre para todos é um argumento que impressiona, mas é ingênuo. O argumento de que, ao invés das cotas, dever-se-ia garantir educação de qualidade universal desde a escola primária para todos pode parecer um argumento lúcido, mas não é. É reacionário.
O ensino de qualidade significa a desmercantilização de uma das necessidades humanas mais sentidas. Em nenhum dos processos revolucionários do século XX foi possível garantir acesso irrestrito ao ensino superior para todos, muito menos em qualquer curso. Não se pode pedir justiça ao futuro, sacrificando a justiça no presente: por que a juventude negra deveria aguardar que os seus filhos, talvez, daqui a vinte anos, possam ter acesso ao ensino superior gratuito? Essa posição afasta o movimento negro da causa socialista.
A aproximação do movimento negro da esquerda depende, em primeiro lugar, da capacidade das organizações da classe trabalhadora de assumirem a defesa das reivindicações de combate ao racismo: desde a lei de cotas até a luta contra a invasão dos bairros periféricos pelas polícias, ou a luta pela legalização do uso de drogas.
Equidade não é o bastante
O horizonte político do liberalismo nunca foi além da igualdade jurídica dos cidadãos. Os cidadãos seriam iguais, mas somente diante da lei. A igualdade possível seria a equidade. O ponto de partida do marxismo na análise do capitalismo foi a crítica do direito irredutível à propriedade privada e à acumulação. Os socialistas alertavam, mesmo antes de Marx, que a liberdade não seria possível entre desiguais.
Marxistas devem lutar pela equidade, mas seu projeto é a igualdade social. A igualdade social é um objetivo muito superior à igualdade de oportunidades. A meritocracia considera de forma igual os desiguais. Os socialistas defendem que, em uma sociedade desigual, para que se diminuam as diferenças sociais, não bastaria a equidade: seria necessária tratar de forma desigual os desiguais.
A discussão das cotas abriu uma polêmica, alguns defendendo o princípio meritocrático, e outros defendendo as políticas afirmativas. As cotas sociais e raciais no ensino superior ou nos concursos públicos são reformas que, sob o capitalismo, não poderão inverter a dinâmica decadente do capitalismo periférico. Mas, marxismo não é maximalismo. Nunca é tudo ou nada. Socialismo, agora e já, ou nada. Marxismo é um programa de transição.
Assim como o aumento dos salários ou a estabilidade no emprego, a reforma agrária ou a vinculação de verbas no orçamento do Estado para a educação e a saúde pública, as cotas são uma reforma progressiva. Trata-se de uma conquista parcial, mas não por isso, menos importante.
Os defensores da meritocracia estrita propõem à juventude operária e negra que estudem mais, e tentem o vestibular outra vez. A equidade é socialmente regressiva. O seu resultado será o isolamento político-social dos que defendem as Universidades públicas, como a USP, as Federais e os CEFET’s, beneficiando a campanha pela cobrança de mensalidades e, finalmente, a privatização.
Exploração e opressão
Os marxistas insistem na centralidade da luta contra a exploração, mas não ignoram o racismo, o machismo, a homofobia e outras discriminações que dilaceram a sociedade. Reconhecem a legitimidade das lutas contra a opressão.
O argumento dos que defendem a igualdade de oportunidades contra as cotas aceita a meritocracia como horizonte. A equidade é o limite do liberalismo. O socialismo quer igualitarismo. A sociedade burguesa histórica nunca pôde realizar a igualdade jurídica. Em país algum os cidadãos são iguais diante da lei, porque os donos do capital podem mais. Ser branco pobre no Brasil nunca foi o mesmo que ser negro pobre.
A igualdade de oportunidades não pode corrigir, diminuir, sequer atenuar esta iniquidade. Apresentar aos trabalhadores negros o mesmo programa que se apresenta aos trabalhadores brancos significa ignorar sua condição. Nivelação do programa fechando os olhos para a opressão específica que castiga, há séculos, a população negra não ajuda a unificar os trabalhadores, ao contrário, divide.
Tratar os desiguais como iguais perpetua a desigualdade
A necessidade de tratar de forma desigual aqueles que vivem e sofrem em condições distintas é um critério consolidado na tradição socialista. O marxismo defendeu que a passagem a uma sociedade socialista deveria ser compreendida pelo critério de distribuição de “cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, construído pela socialização da propriedade. Seu objetivo é a gratuidade da alimentação, da educação, da saúde, dos transportes ou do lazer.
A distribuição segundo a satisfação das necessidades exigirá, portanto, ir além do regime do trabalho assalariado. Os marxistas nunca se iludiram, todavia, que este princípio organizador da distribuição pudesse ser implantado imediatamente, ou à escala de um só país.
O marxismo propôs como princípio de distribuição para uma sociedade de transição “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”. Não defendeu salários iguais para trabalhos desiguais. Mas, a equidade é ainda uma igualdade formal. Nas palavras de Marx:
Este direito igual continua levando implícita uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que produziram; a igualdade aqui consiste em que se mede pela mesma medida: pelo trabalho. Mas, uns indivíduos são superiores física e intelectualmente a outros e produzem no mesmo tempo mais trabalho, ou podem trabalhar mais tempo (...) Este direito igual, é um direito desigual para trabalho desigual(...) Para evitar estes inconvenientes, o direito teria que ser não igual, mas desigual. [2]
Ao reconhecer que a distribuição seria regulada segundo o trabalho realizado, os marxistas estavam admitindo uma distribuição desigual, transitoriamente, o que é o mesmo que aceitar algum critério de racionamento. Os socialistas reconheceram que a diminuição da desigualdade social impulsionada pelo princípio de distribuição meritocrático – a tirania do esforço ou do talento – não garantiria ainda a igualdade social, porque estaríamos diante de um tratamento igual para os desiguais, perpetuando-a, indefinidamente. Essa é a defesa de Lênin:
“Mas isto não é, todavia, o comunismo, não suprime ainda o direito burguês, que dá uma quantidade igual de produtos a homens que não são iguais, e por uma quantidade desigual de trabalho” [3]
Trabalhos diferentes, pela complexidade da educação exigida, ou pela intensidade do desgaste ou ainda do perigo, não poderiam ter salários iguais. Aceitaram a necessidade de seleção para o acesso às melhores oportunidades. Descartaram o sorteio porque seria ainda pior, premiando o acaso.
Os marxistas admitiram a introdução de fatores de correção social e, culturalmente, progressivos. Essa discussão surgiu a propósito das reivindicações das mulheres e das nações oprimidas, mas o critério é o mesmo quando discutimos o racismo.
Ignorar a condição oprimida específica da população negra, em nome de um programa comum de todos os trabalhadores contra o capital, não vai construir a unidade da classe trabalhadora, mas a sua divisão. O racismo no Brasil não é uma invenção dos líderes dos movimentos negros. As cotas são parciais porque não podem mudar, substancialmente, a condição dos negros sob o capitalismo. A juventude negra só terá um futuro melhor se unir sua luta com toda a juventude trabalhadora. A libertação dos negros só será possível com a libertação do povo brasileiro. Mas quem opõe a luta pela revolução à luta por reformas não é marxista.
[1] MARX, Karl, Os debates na Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha, in Escritos de Juventud, México, Fondo de Cultura Econômica, 1987, p.251.
[2] MARX, Karl, Crítica do programa de Gotha, Lisboa, Nosso Tempo, 1971, p.31-32.
[3] LENIN, Vladimir, El Estado y la revolución, in Obras Escojidas en tres tomos, Moscou, Progresso, 1960. p.371. Tradução nossa.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum