Entre tanta feiura e maldade, há lindas, ainda que tímidas, florezinhas teimando em crescer no asfalto. No último 23 de setembro ficamos sabendo que Laerte Coutinho é a intelectual do ano, título concedido pela União Brasileira de Escritores.
O prêmio, segundo o site da UBE,é “réplica do personagem criado pelo jornalista Lélis Vieira e pelo chargista Benedito Barreto em 1962 - não é um prêmio literário, mas láurea conferida à personalidade que, havendo publicado livro de repercussão nacional no ano anterior, tenha se destacado em qualquer área do conhecimento e contribuído para o desenvolvimento do país e defesa dos valores democráticos.”..
“Recatada” senhora septuagenária, Laerte vai se juntar à galeria ilustríssima, que agrega gente como Drummond, Octavio Ianni, Jacob Gorender, Ailton Krenak, Belluzzo, Lygia Fagundes Telles, Antônio Cândido, Dom Paulo Evaristo Arns, Érico Veríssimo, Cora Coralina, entre tantos outras e outros.
Mais do que justo, reconhecimento óbvio a uma artista que é referência cultural e política há mais de 30 anos.
De imediato, quando decidi escrever esse artigo pensei na elegância tímida de Laerte e sua genialidade artística - lembrei na hora de Chico Buarque (ela e ele tem em comum um certo jeito desconfiado, além de toda vida compromissada com a transformação do mundo).
Juca Pato é frescor bem vindo em um ano ruim pro Brasil e para Laerte - que teve Covid em janeiro, chegou a ir para UTI. Foi uma alegria imensa, para milhares de possas sua recuperação.
Meu primeiro contato com a obra dela foi no início dos 1990 - Piratas do Tietê charges na Folha de São Paulo. “Los Três Amigos” (com Angeli e Glauco), imperdível. Só muito tempo depois fui saber que Laerte desde o fim dos anos 1970 colaborava com sindicatos e organizações de esquerda, inclusive com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e desenhava o icônico João Ferrador (hoje eu não tou bom). Foi militante do PCB e ajudou a construir várias iniciativas de comunicação popular.
Tantas charges, tantos personagens marcantes.
A expressão artística de Laerte é densa e sofisticadamente imbricada à sua biografia. Engajamento político, a perda de um filho em 2005, a descoberta/construção de sua nova identidade de gênero, aos quase 60. Vida e obra.
O fato é que em algum momento Laerte transcendeu. Deixou de ser talentosa chargista. Se transformou em filósofa, pensadora do mundo, da vida. A obra de Laerte é e vai ser cada vez mais reconhecida e estudada.
Fui apresentado à Laerte em uma manifestação contra a homofobia, na praça da República, talvez em 2009 ou 2010, pouco antes dela iniciar sua transição. Lembro-me que fiz um comentário rápido sobre as tiras que ela estava a publicar na época. Confessei que não entendia muitas delas. Laerte, com aquele sorriso gostoso respondeu: “mas eu também não entendo”. A cara dela.
Em 2013, quando fui coordenador das políticas LGBT do governo Haddad e Laerte já havia se tornado uma referência também do ativismo trans, nos conhecemos de fato e fizemos, desde lá, várias coisinhas juntas (tive o privilégio de entrevistá-la mais de uma vez, sim eu conto isso com orgulho, embora saiba que ela não gosta dessas coisas).
Laerte, prolífica, tem obra caudalosa. Um troço impressionante. Às vezes direta e acessível, muitas outras quase enigmáticas: camadas de significado a serem escavadas.
A visibilidade midiática que obteve em razão de ser pessoa pública que realizou transição de gênero “tardiamente” foi bela oportunidade para muito mais gente tomar contato com o pensamento e a arte laertianas.
Programas de TV, documentários, entrevistas, instalação n Itaú cultural, edições de coletâneas: temos celebrado Laerte - que é generosa, criteriosa e gente boa. Uma espécie de personalidade “anti-celebrity”.
E, poxa, além e mais importante que tudo isso junto: nossa cartunista segue sendo uma pessoa de esquerda, que tem lado. Que nunca se furta a um bom combate. Que se posiciona não só nas suas charges.
Laerte apoia candidatos de partidos de esquerda, apoia os movimentos sociais, fez a campanha “Lula Livre”. Laerte é antifascista e anticapitalista. Intelectual orgânica da classe trabalhadora.
E sem mais delongas encerremos agora esse panegírico humilde, contudo honesto e pertinentíssimo.
Viva Laerte Coutinho, intelectual do ano nesse brasilsão bolsonarista de meu deus. Salve a inteligência e a arte!
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.