Spoiler: este post vai chocar machos renitentes com autoimagem que não corresponde à realidade.
Dia desses, Laura Astrolábio fez um tweet expondo um letrista de samba, um colunista de cultura. Um artista talentoso, de esquerda. Um militante com imagem positiva na rede.
Laura é verdadeira, não tem papas na língua, tem, como diz o ditado popular, um pavio curto. Certamente muitos a consideram “barraqueira”, porque mulheres que dizem publicamente o que pensam e, por vezes, expõem sujeitos equivocados, são tratadas como não femininas. São tratadas como “feminazis”.
Incrível como a imagem das mulheres, mesmo entre muitos homens de esquerda, é estereotipada. Esses, tal qual o estereótipo do machista que imediatamente associamos à direta, sempre esperam de nós o recato.
Sempre esperam que engulamos sapos e toquemos a vida, sem contrapô-los, sem confrontá-los nas contradições entre seu discurso público e sua prática privada.
Minha geração, na maioria das vezes, faz isso. Faz o esperado. Não expõe a vida privada. Cria uma separação rígida entre público e privado. Fico pensando quantos cânceres este comportamento recalcado, imposto, que não conseguimos dele nos libertar, foram desenvolvidos nas mulheres de minha geração.
Quantas mulheres de luta permaneceram anos a fio em relações desanimadoras, porque engoliram sapos, enterraram frustrações e encararam a responsabilidade do sucesso da relação como sendo unicamente delas.
A geração millennials não é assim. As mulheres desta geração enfrentam o machismo de diferentes formas, uma dela é a exposição das canalhices, covardias... Enfim, expõem sem piedade o sujeito que publicamente tem uma imagem de revolucionário, mas no privado é sofrível.
Quem são esses homens?
Neste texto refiro-me aos homens de esquerda. Na maioria dos casos são talentosos no que realizam. Como o sambista exposto por Laura ou como o militante comunista com o qual me relacionei durante quase 3 anos.
Quero falar desta relação com o comunista e falar para o sambista e neste falar quero falar com companheiros de esquerda.
Vou poupá-los da intimidade de uma relação que durou 3 anos. Uma porque não tenho a verve libertadora de Laura e falar desta relação lembra-me da minha ingenuidade, do meu ser naive.
Incrível como é possível ser “naive” quando você escolhe um caminho que acredita que aqueles com os quais você se relaciona também compactuam com as regras do jogo.
Ser “naive”, neste contexto, é achar que podemos estabelecer relações verdadeiras e com verdade. Estabelecer esse código de condutas com companheiros de esquerda sem qualquer preparo adulto para vivenciar esta experiência é ser “naive”.
Daí que expor essa experiência me faz invejar a coragem de Laura e ao mesmo tempo me lembrar coisas doloridas.
Me lembra que me dei mal por não agir com o companheiro do modo que abomino que façam comigo, por exemplo: eterna vigilância, controle, inquirição, stalkeamento nas redes, enfim, um verdadeiro lavajatismo nas relações.
Me lembra que descobri que a mim foi sonegada informações importantes, esperadas em uma relação entre adultos e que só descobri porque ele deixou sua conta logada em meu celular e ao abrir meu e-mail no automático, como todos nós fazemos, me deparo com uma mensagem estranha, com letras garrafais no subject: “Seu canalha, seu filho.....” Por um momento achei que era spam. Ao ler descubro que meu comunista havia acabado de ter um bebê e, por um motivo que me foge à razão, silenciou sobre a informação.
Me lembra que a sua história contada para mim era de que era um homem divorciado, com um casal de gêmeos. Me lembra que quando sua primeira mulher estava morrendo de câncer ele me ligou sem chão e tive de acalmá-lo durante um jantar japonês com um querido amigo, que chegou a ficar incomodado, (como eu ficaria) com o tempo que passei no celular.
Me lembra que quando o conheci em Salvador, há dez anos, ele chegou a me incomodar com tanto assédio adolescente. Levantava-me para dançar no Pelourinho, lá estava ele no meu encalço. Fazia um gesto para pedir uma bebida, lá ia ele se antecipando e com a bebida na mão.
Me lembra que na semana seguinte ele voou para São Paulo e moveu moinhos para me encontrar.
Me lembra que nunca o considerei um homem bonito, nem sexy e que mesmo assim com tanta insistência, mimos, viagens, trocas, lutas e conversas, (e como conversávamos sobre nossas utopias) acabei por considerá-lo um companheiro.
Me lembra que estava muito bem com meu trabalho, militância, maternidade, escrita, cotidiano.
Me lembra que dei muitas chances de ser franco comigo e que ele chorava feito menino quando eu dizia com todas as letras que não me relaciono pela metade.
Me lembra de um poema que escrevi há mais de 20 anos (sim, eu sempre tive inteligência emocional) que é até hoje a assinatura de meu email:
DECRETO
Não quero nada
pela metade
meia-boca,
meia-sola,
meias medidas.
Ou vem inteiro
ou dê meia volta.
Esse é meu decreto por toda a vida. Eu não faço nada meia boca, eu me dedico ao trabalho, às minhas lutas, às relações de afeto que estabeleço. Porque a vida sem amorosidade é meia vida. E amorosidade só é possível quando temos amor próprio e não projetamos nossos desejos e frustrações no outro. Quando não gozamos com o prazer do outro. Quando o gozo é resultado da troca amorosa na luta, no trabalho, na vida.
Somos seres integrais
Laura, com seu post escancarado, provocou em mim uma autoanálise da mulher que sou, da militante feminista que sou e, especialmente, da mãe feminista que cria uma filha para ser um ser humano em sua integralidade.
E é da integralidade da pessoa mulher que também gostaria de tratar aqui.
Somos seres integrais e íntegros. Somos mais que um corpo e um rosto bonito. Por mais óbvia que seja esta afirmação, preciso dizê-la: somos pessoas inteligentes, com sentimentos, valores, sonhos, utopias. Somos como você, homem de esquerda: seres inacabados, mas que acreditamos estar sempre em construção, em transformação e capazes de operar mudanças em nós e no mundo.
O que temos em comum? Nossa humanidade, nossa capacidade de transformar a nós e àqueles com os quais nos relacionamos: companheiros de luta e utopias.
Nós mulheres héteros não precisamos de homens para sentir prazer sexual. Cá entre nós, a ciência do prazer avançou muito na última década. O sexo com brinquedos sexuais não deixa a desejar a prática do sexo com nenhum parceiro. No entanto, como pessoas integrais que somos, nos interessamos pelos homens na sua integralidade.
Não estamos interessadas na beleza física, no tamanho do pênis ou na habilidade de dedos e língua nas partes íntimas. Repito, existe toda uma tecnologia eficiente e sem dores de cabeça capazes de resolver o campo do desejo sexual feminino.
Estamos interessadas no todo que forma a pessoa do sexo masculino. Entre esse todo está a capacidade de ser honesto em seus sentimentos, a capacidade de estabelecer uma relação companheira.
Homem de esquerda, melhore!
Sonhamos em transformar o mundo, nosso discurso fala da igualdade social, da igualdade entre gênero, da igualdade racial. Mas o quanto nossa prática reflete nosso discurso?
Homem de esquerda, independente do tipo de relação que você esteja estabelecendo ou irá estabelecer, você precisa buscar coerência entre seu discurso público e sua prática privada. Como você pode se importar com o povo, se você não respeita quem está próxima a você?
Voltemos a Laura, à verve da Laura, à sua falta de paciência com contradições primárias: homens de esquerda machistas, homens de esquerda covardes, homens de esquerda incoerentes entre a prática e o discurso.
Mudar é muito difícil diria Paulo Freire, esse pensador grandioso, que na esteira da grande produção intelectual latino-americana dos anos 60 e 70, é capaz de nos ensinar até hoje.
Mudar é difícil, mas mudar é necessário. Somos inseridos em uma sociedade secularmente patriarcal, sim eu sei. Mas por que os esforços para construir relações de equidade no trabalho e na vida são nossos, das mulheres e são relegados a segundo plano por nossos companheiros de luta?
Por que a mudança transformadora, permanente, projetada, integral que tanto pregamos em nossos discursos no partido, nos caminhões, nos grandes atos, nas redes, não se reflete na prática quando estamos numa mesa de negociação, quando vamos para o Congresso Nacional como representantes do povo, quando estamos dividindo teto, mesa e cama?
Mudar é difícil, mas necessário. Mudar exige empatia, respeito a outra, à companheira de sonhos e utopias. Sem provocar essa mudança real e concreta que reflita na prática cotidiana, produzimos apenas discursos esvaziados de sentido.
O meu ex- companheiro comunista até hoje me persegue onde quer que me encontre. Chegou a trocar o número de telefone depois que o bloqueei no email, no face, instagram, twitter, whats. Chegou a condicionar financiamento de evento à obrigatoriedade de minha participação. Usou de seu poder de influência para se reaproximar.
O meu ex-comunista é um mau caráter? Acredito que não. Mas é um covarde. Covarde, inclusive, em assumir seus próprios sentimentos. Covarde ao me sonegar informações importantes sobre sua própria vida.
Que revolução fará meu ex-comunista se foi incapaz de operar mudanças em si mesmo? Por isso, homem de esquerda, melhore! As mulheres de esquerda, como Laura, não se calarão.