Por Mariana Bernussi e Victória Perino Rosa *
Após a tomada de poder do Afeganistão pelo Talibã, veículos de comunicação correram para anunciar que um dos membros do grupo fotografado no palácio presidencial em Cabul no domingo (15/08) havia passado sete anos de sua vida em Guantánamo. A prisão, criada em janeiro de 2002, é uma das mais visíveis, sombrias, trágicas e violentas manifestações da Guerra ao Terror que sucedeu os atentados à torres gêmeas em 11 de setembro de 2001.
A caçada para encontrar os supostos membros da Al-Qaeda responsáveis pelos ataques de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque teve início com a invasão do Afeganistão, comandada pelos EUA e aliados da OTAN e contou com forte apoio da comunidade internacional. A partir de então, suspeitos de ligação com organizações consideradas terroristas, e que, portanto, representavam uma ameaça potencial aos EUA, eram procurados, capturados e levados para um conjunto de locais secretos, onde seriam duramente interrogados. A base militar de Guantánamo, em Cuba, e a prisão iraquiana de Abu Ghraib, no Iraque, figuravam entre os principais locais do programa de detenção secreta dos americanos na esteira da Guerra ao Terror.
Após quase duas décadas de existência do centro de detenções em Guantánamo, estimativas dão conta de centenas de casos de violações aos direitos humanos, como tortura, prisões arbitrárias e diversas outras formas de violações das leis americana e internacional. Com a ocupação norte-americana no Afeganistão chegando ao fim, as pressões, locais e internacionais, pelo fechamento de Guantánamo têm marcado o governo Biden.
O que se sabe sobre Guantánamo?
Após os atentados às torres gêmeas, Bush veio à público para falar aos americanos e ao mundo. Em seu discurso, o então presidente afirmou que: “Nossa guerra contra o terrorismo começa com a Al Qaeda, mas não se encerrará com ela. Não terminará até que todos os grupos terroristas de alcance mundial tenham sido identificados, detidos e derrotados”. Era o início da Guerra ao Terror.
Ainda em 2001, no mesmo dia em que Cabul foi tomada pelos aliados, uma ordem presidencial foi publicada determinando a criação de um centro de detenção dentro da base naval norte-americana localizada na baía de Guantánamo. Em 11 de janeiro de 2002, o governo dos Estados Unidos transferiu ilegalmente/arbitrariamente seus 20 primeiros prisioneiros para Guantánamo na condição de "combatentes inimigos". Esse novo conceito forjado pela administração norte-americana se opõe à tradicional nomenclatura de prisioneiros de guerra, definida pelas Convenções de Genebra, das quais os EUA são signatários, e não encontra reconhecimento no direito internacional. Na prática, isso implica que os encarcerados não têm assegurado o seu direito de julgamento em tribunal competente.
Desde a criação de Guantánamo, estima-se que mais de 800 prisioneiros, provenientes de mais de 48 países, passaram pelo centro de detenções, incluindo até mesmo crianças. Destes, a maior parcela, 219, tinham cidadania do Afeganistão, de acordo com os dados compilados pelo The New York Times. Hoje, após a transferência de Abdul Latif Nasir, restam 39 homens presos, mas Guantánamo já chegou a ter mais de 670 detentos em 2003, no auge da ocupação.
Para se ter uma ideia da dimensão do centro de detenção, Guantánamo também pode ser considerada uma das mais caras prisões do mundo. Os EUA já gastaram mais de US $6 bilhões desde a sua inauguração, um gasto médio de US $350 milhões por ano, segundo dados do Departamento de Defesa. Dentre esses gastos estão incluídos o transporte de pessoas (militares, funcionários, advogados, médicos) e equipamentos entre a ilha e o continente. Além disso, o governo norte-americano também firmou contratos com empresas privadas para o fornecimento de serviços de tradução, inteligência e tecnologia. É o caso, dentre outros, da G4S, empresa britânica associada a diversos casos de violação em direitos humanos, que atua em serviços de provisão de segurança, e assinou um contrato estimado em aproximadamente US $118 milhões com o Pentágono para atuação em Guantánamo.
Ano a ano, multiplicam-se as denúncias de violações aos direitos humanos, associadas a práticas de tortura por afogamento, exposição dos presos a luz intensa e música alta, conforme retratado em diversos relatórios de organizações internacionais para direitos humanos, filmes e documentários. Pelo menos desde 2004, há relatos de jornalistas, ativistas e organizações como a Cruz Vermelha, sobre as condições deploráveis nas quais os presos se encontravam, o que também se refletia nas greves de fome e tentativas sistemáticas de suicídio pelos presos. Além do emprego de métodos de tortura, revelados por uma investigação do Senado norte-americano em 2014, os prisioneiros são mantidos num limbo jurídico, sem acusações formais, sem direito a representação legal e sem data para um eventual julgamento - informalmente, são conhecidos como “eternos prisioneiros” da Guerra ao Terror. Hoje, restam 39 presos.
Pressões para o fechamento do complexo prisional
As questões sobre o eventual fechamento de Guantánamo surgiram com destaque ainda em 2007, durante a campanha presidencial de Barack Obama. À época, Obama se referia ao centro de detenções como um “triste capítulo na história norte-americana” e prometia que, ao assumir o posto de comando na Casa Branca, encerraria este capítulo. Nos primeiros dias de seu mandato, em 26 de janeiro de 2009, o presidente chegou a emitir uma ordem executiva para o fechamento do centro de detenções. Entretanto, após pressões políticas e jurídicas, Obama não cumpriu a promessa de campanha. Ainda antes de passar o bastão para seu sucessor, Barack Obama realizou a transferência de 15 detentos de Guantánamo para outros países, deixando o tema do fechamento do complexo prisional para Donald Trump - que, publicamente, se colocou contra esta medida em diversas oportunidades, na medida em que considerava uma política necessária para a contenção do terrorismo.
Nesse sentido, a manutenção ou encerramento de Guantánamo têm sido alvo de constantes disputas. Dentre os argumentos que têm justificado a manutenção da prisão, aquele que mais se destaca é a constante referência à prisão dos detentos como uma medida no sentido de garantir a “segurança” nos Estados Unidos, uma vez que estes são considerados atores politicamente violentos - nomenclatura tão ampla, que poderia ser aplicada a qualquer contexto, inclusive (se quisermos) em referência ao Estado.
Com a chegada de Biden no poder e o fim da ocupação norte-americana no Afeganistão, o precedente para o funcionamento de Guantánamo tem sido tensionado, e o tema voltou ao debate público com a ordem de transferência de um detento em julho de 2021, agora expedida pelo atual governo, e a retomada do projeto que havia sido promessa de Obama.
E agora, Biden?
Apesar das expectativas pacifistas que se impõem na conjuntura sobre o atual governo dos EUA (e a saída do Afeganistão também trouxe à tona esta expectativa), essa não é uma característica da carreira política de Biden. Quando foi senador, e especialmente quando presidiu o Comitê de Relações Exteriores do Senado, Biden apoiou diversas ações militares e intervenções internacionais.
Se não é possível atestar a hipótese de um pacifismo intrínseco ao novo governo, talvez uma outra explicação para o possível fechamento de Guantánamo seja um ganho eleitoral democrata nas midterms. Contudo, com a proximidade das eleições, marcadas para 2022, é mais provável que a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão tenha de fato mais impacto sobre o voto do eleitor do que um fechamento hipotético e futuro de Guantánamo.
Talvez possamos considerar que o elemento que mais pesa hoje sobre essa possível decisão, e que ao mesmo tempo está mais alinhado com os discursos recentes de Biden, é a questão econômica. Em seu recente discurso no Congresso, o presidente norte-americano focou sua fala em discussões sobre crise e planos de reconstrução da economia americana.
De qualquer maneira, as pressões pelo fechamento da prisão de Guantánamo têm uma importância para além das razões domésticas, individuais ou partidárias. Trata-se de uma mensagem sobre a insustentabilidade deste modelo de complexos prisionais, que vai além das fronteiras de Guantánamo e é reproduzido em contextos outros, e que representa um conjunto de saberes, técnicas e comportamentos relacionados à repressão e à violação dos direitos humanos e que revelam uma dimensão violenta dos regimes democráticos contemporâneos. A mensagem contra Guantánamo é, também, uma mensagem contra as técnicas de repressão pelo Estado em qualquer lugar do mundo.
*Mariana Bernussi é professora de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi e da PUC-SP, pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e do Núcleo de Estudos Transnacionais para Segurança (NETS).
*Victória Perino Rosa é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP), pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e do Núcleo de Estudos Transnacionais para Segurança (NETS).
(*Edição acadêmica e comentários Bruno Huberman)
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.