Todos têm uma história.
Cheguei ao que podemos chamar de “iniciozinho” da vida adulta na primeira metade dos anos 70: meia dúzia de anos depois de 1968, mas antes da ascensão de Reagan e Thatcher; depois dos hippies, mas antes dos punks; depois dos Beatles, mas antes do rock eletrônico; depois das calças “bocas de sino” e antes dos paletós com ombreiras gigantes; em tempo de ver Pelé brilhar na Copa do México de 1970, e antes de Maradona; quinze anos depois da pílula e dez anos antes da epidemia de Aids; depois dos estruturalistas, mas antes dos pós-modernismos. Se tivesse ficado no Brasil, teria Médici pela frente, mas estava em Portugal: o 25 de abril despertou a primavera dos meus dezessete anos. Em resumo: tudo considerado tive sorte.
Ainda jovem me uni à causa do socialismo. O marxismo e o compromisso militante não foram incomuns entre os da minha geração. Definiu a minha vida e isso não é dizer pouco. Embora de extração social, relativamente, privilegiada para o que era o Brasil dos anos cinquenta, porque filho da classe média assalariada, funcionários públicos de uma burocracia que se profissionalizava em um Brasil que crescia e se urbanizava, minha vida foi subvertida pela centelha da revolução na madrugada de um longínquo 25 de Abril, em Lisboa, nos idos de 1974.
A vida adulta atropelou a adolescência. A revolução foi um processo vertiginoso de amadurecimento. Nasceu, então, uma paixão de que o improvável era possível. Nunca duvidei. Não aprendi somente nos livros. Eu sei que é possível.
Na minha casa eu era o primeiro a acordar e sair, e não ouvia rádio de manhãzinha. Então, fui para as aulas e fui surpreendido porque os portões do Liceu d. Pedro V estavam fechados. Segui para o Café que ficava ao final da rua e lá me informaram que um levante militar tinha começado, e mais nada. Caminhei na direção da Gulbenkian e peguei o metrô para o Rossio, a praça central da Baixa de Lisboa.
Quando saía da estação, subindo as escadas fui surpreendido por uma passeata de uma centena de militantes maoistas, estudantes com alguns populares arrastados que marchavam, em formação e disciplina semimilitar, muito solenes, gritando: “Pão, Paz, Terra, Liberdade, Democracia, Independência Nacional!” Já os conhecia, e não parei, levando meu coração na mão. Subi para o Largo do Carmo para tentar encontrar alguém conhecido que pudesse me explicar o que estava acontecendo.
Éramos alguns milhares apinhados em frente ao Quartel da GNR. Foi o momento mais feliz de minha vida até então. Eu estava lá quando Marcelo Caetano saiu para o aeroporto e para o exílio no Rio de Janeiro, depois de ter se rendido ao MFA. Uma semana depois no 1º de Maio a mobilização era colossal, na escala das centenas de milhares, e assim foi durante um ano e meio, até o sinistro 25 de novembro de 1975.
A exaltação que nos emocionava era arrebatadora. A insurreição do 25 de abril abriu uma janela na história e por ela entrou o vendaval de uma revolução social imensa. Um ano depois a burguesia portuguesa fugia do país, mais de 60% do PIB tinha sido nacionalizado, e comissões de trabalhadores nas indústrias, populares nos bairros, camponeses nos latifúndios, soldados e marinheiros nas Forças Armadas organizavam assembleias e lutavam pela transformação de tudo.
Mas, perdemos. Demorei quase três anos para ter a certeza de que tínhamos sido derrotados. A inflexão da situação, quando o tsunami vem com força total é muito grande e não faz sentido enfrentá-lo de frente. É preciso saber se proteger. Sabia bem o que me esperava se ficasse, e não era o bastante. Terminar o curso universitário, me estruturar, socialmente, como professor, construir uma relação amorosa estável, talvez, uma família, cuidar de meu irmão. Aos vinte e um anos decidi que era hora de voltar para o Brasil, e tentar ser útil por aqui.
Já se disse que não se deve julgar ninguém por aquilo que pensa de si próprio. Estamos sempre entre aquilo que fomos e aquilo que seremos e, dificilmente, poderíamos ter uma percepção objetiva de como nos transformamos. Enfim, não podemos ser bons juízes de nós mesmos. Mas, nunca mais fui o mesmo. Foi a maior mudança de toda a minha vida. Não foi tudo em um dia só, mas foi intenso, rápido e irreversível. Me transformei, moral e intelectualmente, em um militante. Ou. como dizíamos então, um pouco pomposos, em um revolucionário profissional.
Mas nunca tive qualquer fantasia “substitucionista”. Temos pressa, mas aprendi a ser paciente. Ninguém faz revoluções. Nenhuma organização faz revoluções. Uma revolução é um processo de luta de classes que só se abre quando milhões de pessoas comuns, em sua imensa maioria até então, politicamente, desinteressadas ou até resignadas, despertam para a descoberta que suas lutas são, socialmente, mais poderosas do que tudo. Revolucionários ajudam a preparar as condições subjetivas que favorecem o triunfo de revoluções. Auxiliam, colaboram, incentivam as amplas massas a retirar conclusões sobre os eventos e os interesses em disputa. Não podem substituir.
O relógio da história não responde às nossas vontades. Sei que é comum na esquerda radical o que podemos resumir como uma visão “romantizada” da radicalização de movimentos de vanguarda, um tipo de deslumbramento ético e estético voluntarista, um fascínio emocionado pelas ações “exemplares”. Nunca fui atraído por essa “embriaguez” ideológica.
Talvez, porque nunca tive ilusões de onipotência, uma “relíquia infantil” comum. Tenho consciência dos meus limites. Minha saída do universo narcisista da primeira infância foi até prematura. Nunca consegui me comunicar com meu irmão um ano mais novo. Minha neurose é de outra natureza e remete a sentimentos de culpa.
Como tantos outros os anos me levaram a inocência, mas não a esperança. O tempo e a experiência são implacáveis. Nem as ilusões, que preferiríamos não perder, permanecem intactas. O compromisso assumiu formas diferenciadas, mas nunca diminuiu. Até hoje, aquela promessa, uma aposta suspensa no tempo, permanece viva, ainda que a espera seja longa.
Cheguei ao marxismo na resistência à ditadura de Marcelo Caetano em Portugal e, sendo estrangeiro, me senti irresistivelmente atraído pelo internacionalismo. Associei-me aos “troskos”, uma das tendências mais críticas, sofrendo forte influência política de exilados argentinos. A paixão desse marxismo de juventude foi sendo polida ou corrigida, sob muitas e variadas influências.
Mas militei nos últimos quarenta e sete anos sob a mesma bandeira: o internacionalismo marxista. Sou um trotskista da revolução brasileira.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.