Diante das imagens de um helicóptero estadunidense sobrevoando a embaixada de Cabul e de afegãos se agarrando em um avião na desesperada retirada de Cabul diante da blitzkrieg da retomada do país pelo Talibã, acompanhamos na TV brasileira correspondentes e apresentadores entre a irritação e consternação: depois de décadas dando apoio propagandístico à guerra contra o terror e a Doutrina do Destino Manifesto dos EUA, sentem-se agora órfãos e desamparados diante do reposicionamento geopolítico do Império. Já falam em “queda” na aprovação de Biden, revelando a natureza totalmente tautista da grande mídia: ao se apegar com fidelidade canina a uma narrativa hegemônica, torna-se cega à realidade. Mas, a crise do Afeganistão oferece uma mais-valia semiótica: a “turbulência política” internacional e brasileira servem de desculpa para inflação e o aumento dos combustíveis e energia.
“Vai mexer com o mundo todo... parece tão distante lá o Afeganistão, mas tem reflexo na vida de todos nós... até no posto de gasolina quando você for abastecer!”. Assim o apresentador Roberto Kovalic, do telejornal Hora 1 da Globo, comentou a retomada do Afeganistão pelo Talibã.
Já foi o tempo em que a grande mídia podia se autocensurar ou simplesmente dar às costas para a realidade e sumir da pauta notícias que pudessem contradizer suas narrativas e interesses políticos. Hoje, os aquários das redações têm que mobilizar um sofisticado arsenal semiótico para filtrar ou ressignificar as notícias. Numa época de hegemonia das mídias de convergência, se a grande mídia não der a notícia, em algum outro lugar ela vai aparecer.
O dólar volta a disparar, enquanto os juros acompanham os aumentos das tarifas de energia e preços dos combustíveis – o que gera um efeito inflacionário exponencial por toda a economia – que a grande mídia ressignifica como “alta de preços”, para tirar o peso negativo da palavra “inflação”.
Para a grande mídia, que tenta descolar a imagem do ministro Paulo Guedes (e sua agenda de reformas e privatizações) da “crise institucional” de Bolsonaro, a escalada da crise econômica é um preocupante ruído para o bate-bumbo diário da solução neoliberal para o País.
Sem poder esconder os fatos, tem que ressignificá-los: as tarifas de energia sobem? É a bandeira vermelha por causa da seca decorrente das “mudanças climáticas” e “aquecimento global”. O desemprego aumenta? Foi a pandemia e, agora, a “crise política” que contamina o pessimismo dos mercados.
Mas agora o malabarismo semiótico da grande mídia redobrou: junta-se a isso o ruído informacional da retomada do Afeganistão pelo Talibã, atropelando a narrativa da “intervenção humanitária” e da “luta contra o terror” do Ocidente no Afeganistão, terra de extremistas e fundamentalistas feios, barbudos, sujos e malvados.
Por que a gasolina sobe?
O comentário do apresentador Roberto Kovalic no Hora 1 é um caso exemplar desse malabarismo discursivo: a tensão no Afeganistão poderá ser mais um fator que explique o aumento dos combustíveis, assim como a “retomada econômica no mundo pós-pandemia” que pressionaria o valor do combustível para cima – como tenta racionalizar o jornalismo econômico da Globo News, colocando fora de discussão a política de preços da Petrobrás atrelada ao valor internacional do petróleo.
Enquanto a CNN nem tenta encarar o esforço da racionalização. Já parte para matérias sobre a “composição dos preços dos combustíveis”, sugerindo jogar a responsabilidade dos reajustes nas distribuidoras, postos de gasolina e nos impostos estaduais – o que dá “match” com a retórica de Bolsonaro.
Esse esforço retórico do jornalismo corporativo lembra a clássica operação semiológica da mitologização descrita por Roland Barthes (naturalização ou des-historização dos fatos), na qual tira-se o peso sociopolítico dos fatos para atribuí-los a fenômenos de duas naturezas: a primeira natureza, as mudanças climáticas; e a segunda natureza, a humana – os malditos políticos (de Brasília ou do Afeganistão) que insistem em provocar crises que tiram o sossego natural dos mercados.
As “turbulências políticas” tornam-se justificativas para a crise econômica, poupando Paulo Guedes e a imposição da agenda neoliberal: supostamente é o “clima de incertezas” que afasta investidores e deprime os pobres mercados.
A última vez que esse humilde blogueiro viu a grande mídia tão desnorteada, sem poder entender a aceleração dos acontecimentos, foi em 2013 na eclosão das manifestações nas chamadas Jornadas de Junho – num primeiro momento via nos acontecimentos um “misto de burrice com ressentimento”. Levou pouco mais de uma semana para os analistas de plantão entenderem o chamado político para, depois, entrarem de cabeça no jornalismo de guerra contra o governo lulopetista.
Por décadas a grande mídia sustentou a narrativa da política norte-americana do combate ao terror pós atentados de 2001 dentro da ideologia do “choque de civilizações” entre Oriente e Ocidente – a propaganda da luta das sociedades liberais e democráticas contra o fundamentalismo islâmico e o terror fundamentalista religioso. Sempre viu nos milhares de soldados estacionados no Iraque e Afeganistão como um esforço do Ocidente em levar para as pobres mulheres, prisioneiras dentro das burcas, os costumes liberais dos países democráticos. Enquanto oportunamente “esquecia” dos nossos próprios extremistas políticos e fundamentalistas religiosos – Trump, Bolsonaro et caterva.
Por isso, as imagens da verdadeira blitzkrieg na capital Cabul retomando o governo do Afeganistão pelos talibãs pegou os fiéis cães sabujos da grande mídia de surpresa. Simplesmente não conseguiam entender a facilidade como os “invasores” empurraram os colaboradores da chamada Zona Verde ocidentalizada para o aeroporto, numa tentativa desesperada de fuga – que mais tarde a mídia os chamou de “refugiados”, para criar um cenário de “catástrofe humanitária”.
Como bem observou o jornalista Pepe Escobar, na verdade a “perda” do Afeganistão representa um reposicionamento dos EUA dentro da nova configuração geopolítica: trocar a “guerra contra o terror” pela estratégia de, simultaneamente, “isolar a Rússia e fustigar a China por todos os meios possíveis para evitar a expansão das Novas Rotas da Seda”. Por isso, ocupara pequenos países deixou de ser a prioridade: “O Império do Caos pode fomentar o caos – e supervisionar uma variedade de bombardeios – a partir de sua base CENTCOM, no Catar – clique aqui.
Mas a grande mídia brasileira não está só no seu desamparo. Tem a companhia luxuosa da OTAN, Inglaterra e Itália, humilhados por terem dado tanto apoio enviando tropas à Zona Verde do Afeganistão e, agora, ser humilhada por um bando de pastores de bode.
Poucas vezes viu-se uma irritação e consternação tão grandes como a da correspondente nos EUA, Carolina Cimenti, escandalizada com o risco que “mulheres e meninas” passarão nas mãos dos malvados talibãs e o retrocesso dos costumes no país, abandonado de repente pelo Ocidente.
Vai levar algum tempo até os analistas liberais do jornalismo corporativo entenderem que a nova geopolítica norte-americana (iniciada com Trump e diligentemente executada por Biden) consiste na criação de um novo Eixo do Mal: o eixo Talibã-Paquistão-China. Como afirma Escobar, “o novo Grande Jogo na Eurásia acaba de ser carregado”.
Por ora, os analistas do jornalismo corporativo, órfãos e desamparados, estão usando as “mulheres e meninas” como moeda para suas racionalizações – roupas, costumes e o corpo das mulheres passaram a ser politizados. A sentença é: “o governo talibã será autoritário com as mulheres!”
Mesmo sabendo-se que, apesar da presença norte-americana no país, as mulheres não abandonaram burcas e a moralidade islâmica – pouco foi mudado no status das mulheres.>>>>>Continue lendo no Cinegnose>>>>>>>
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.