Não tem jeito: toda sociedade cria, a partir de seus grupos dominantes, ídolos, ícones, mitos (!), estátuas e monumentos. Eles têm a função - no caso das estátuas e monumentos, “adubados” pelo cocô dos pombos - de reproduzir as narrativas vitoriosas.
Em momentos de grandes mudanças sociais e de revoluções, estátuas e imagens são derrubadas, arquivadas ou trocadas. Foi assim com o rei George III na independência dos EUA; foi assim com Stálin e mesmo Lênin na antiga URSS e outros países do “socialismo real” quando houve a restauração capitalista; foi assim com Sadam Hussein no Iraque. Compreensível essa “troca de guarda”: somos também movidos a paixões e símbolos, e os interesses de classe mudam.
No Brasil, aceitamos muito passivamente as “homenagens” a “grandes vultos”, cuja trajetória desconhecemos. Quase ninguém sabe quem foi o “grande homem” (quase sempre homem e nem sempre grande, aliás) que dá nome à rua onde mora. E, na maioria dos casos, é de gente que fez muita sacanagem... Cada logradouro e cada monumento mereciam uma explicação mínima sobre quem foi a figura que lhe deu o nome.
A chamuscada na estátua de Manuel Borba Gato (1649-1718), na Avenida Santo Amaro, na capital paulista, trouxe esse bom debate sobre o significado das que estão espalhadas pelas cidades brasileiras. Fazer ações de repúdio e destruição, ainda que legítimas, tem gerado reação igual e contrária: ontem, na mesma cidade de São Paulo, uma linda imagem grafitada de Marielle e uma lápide em homenagem a Marighella amanheceram estragadas por tinta vermelha.
Mas o debate, como propõe Paulo Galo, preso por ter ateado fogo aos pés do Gato de ferro, é pedagógico e necessário. No Rio, desde os anos 80, no bojo do processo (precário) de democratização, conseguimos contrabalançar um pouco essa galeria de personagens questionáveis: perto da enorme estátua equestre do rei absolutista D. João VI está a de João Cândido, o Almirante Negro, líder da revolta da Chibata (num canto da mesma Praça XV, é verdade). E, a poucos quilômetros dali, na Avenida Presidente Vargas, o busto de Zumbi (volta e meia pichado por racistas).
Já tentei, quando era deputado federal, trocar o nome da Ponte Rio-Niterói - de Presidente Costa e Silva, um dos ditadores da ditadura iniciada em 1964 - para Herbert de Souza, o Betinho, fazedor de pontes sociais. Mas o projeto sempre parava em alguma comissão... Também no Rio, por um projeto meu o viaduto do Gasômetro se chama Brigadeiro Sérgio Macaco, que corajosamente impediu sua explosão pela extrema direita militar. Mas pouca gente sabe. Não foi colocada sequer uma placa informando.
Sim, os bandeirantes, em suas expedições “com tropas escoteiras de pólvora e chumbo", aprisionavam índios, estupravam mulheres e capturavam negros escravizados que fugiam, mas cada um deles teve grau diferente de violência. Gato, por uma questão de ocasião, nem foi dos mais atrozes. Raposo Tavares - que dá nome a importante rodovia em São Paulo - acorrentou e escravizou mais de 40 mil “gentios arredios”. Fernão Dias teria enforcado o próprio filho, por “conspiração”. Domingos Jorge Velho liderou a destruição do Quilombo dos Palmares.
O “zelo punitivo” das autoridades sobre quem atacou a estátua de Borba Gato - inclusive prendendo a esposa de Galo, que sequer participou do ato - é inversamente proporcional à sua atenção para com os poderosos que fazem contra a população, diariamente, aquilo que o gato enterra, pregando golpe e destruindo direitos...
Como professor de História, não simpatizo com a destruição de obras, por piores épocas e figuras que representem: que fiquem num museu revelador das atrocidades humanas, como os sobre a Tortura e sobre o Holocausto que existem pelo mundo.
E que essas decisões sejam tomadas à luz do dia e com amplo debate na sociedade.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.