Hoje, eu vou tratar do sistema educacional chinês. Como o leitor já deve ter visto, nas últimas três décadas, a China tem apresentado a maior taxa média de crescimento do PIB do mundo com uma média anual entre 7% e 8%, tornando-se a segunda maior economia mundial em termos de PIB nominal total (Banco Mundial, 2017). Como resultado, a nação chinesa possui não só o maior sistema de educação do planeta, compreendendo quase 260 milhões de estudantes, mais de 15 milhões de professores e cerca de 514.000 escolas — e não estou considerando aqui os números pertinentes às instituições de ensino superior —, mas que é também diverso.
Em termos históricos, o sistema de educação chinês é milenar e remonta ao período imperial de aproximadamente 2.000 anos atrás. Por muitos séculos, o ensino era excludente e só aceitava oficiais e burocratas pertencentes ao sistema imperial, os populares “mandarins”. Foi somente na dinastia Tang (618-907 d.C.) que esse sistema de ensino daria um salto qualitativo e inclusivo. Sob esse aspecto, diversos estudantes originários de famílias humildes passaram a ocupar cargos na corte, o que atenuou grandemente as discrepâncias de classe social. Mesmo assim, do final do período imperial (1912) até a formação da República Popular da China (1949), o nível de desenvolvimento educacional permanecia muito atrasado. Em termos numéricos, cerca de 80% da população era analfabeta, e a taxa de matrícula para o ensino fundamental e médio era de apenas 20% e 6%, respectivamente.
Infelizmente, ainda que o governo comunista chinês considerasse a educação básica universal como o principal objetivo do desenvolvimento educacional, durante a Revolução Cultural iniciada em 1966, a cultura e a educação permaneceram estagnadas. A redenção educacional surgiu no final na década de 1980, estendendo-se por toda a década de 1990, realizada por meio de reformas profundas, as quais permitiram a expansão do acesso à educação de qualidade. Com isso, o governo chinês assumiu, de fato, a educação como valor central, a qual deveria ser compatível com o desenvolvimento socioeconômico do país. Assim, nasceu o moderno sistema educacional chinês.
Com o enorme desenvolvimento socioeconômico na China, a educação ainda é gerida pelo Estado, proporcionando um ensino gratuito, o que agrada as famílias, não só pelas pequenas taxas que pagam pelo ensino público, mas por ser este também de altíssima qualidade. Mesmo assim, pode-se observar uma crescente participação do setor privado no ensino cada vez mais de maneira descentralizada.
Nos últimos anos, o Ministério da Educação tem transferido o controle direto da gestão do sistema educacional, na tentativa de descentralização, para os governos estadual e municipal, os quais se tornaram responsáveis pela administração e supervisão do ensino. Em grande parte, as autoridades regionais também administram instituições de ensino superior.
Outro ponto importante a destacar é a valorização crescente dos profissionais da educação. A China não só tem aumentado a remuneração dos professores e demais profissionais diretos da educação, mas também investido fortemente em qualificação, sobretudo dos profissionais das escolas primárias e secundárias. De acordo com a nova política de formação, cada professor de escola primária e secundária pública deve ter, no mínimo, 360 horas-aulas de formação de cinco em cinco anos. Essas formações são concebidas de acordo com as responsabilidades dos profissionais e dos professores, e elas visam a melhoria e a modernização das competências desses profissionais.
Soma-se a isso a necessidade de qualificar mais os professores das zonas rurais, os quais têm prioridade nesse programa. Nesse sentido, o governo chinês pretende investir, até 2025, o valor de US$1,3 bilhão no programa de qualificação que compreende cerca de 6,5 milhões de professores nas zonas rurais e nas partes central e ocidental do país, considerando-se, assim, o investimento em: (i) áreas rurais, remotas, pobres e minoritárias; (ii) educação pré-escolar, ensino primário e ensino profissional; (iii) subsídios para alunos de famílias carentes; e (iv) construção de uma equipe de professores de alta qualidade. Tem-se, assim, que as recentes reformas educacionais deram ênfase a: (i) erradicação do analfabetismo; (ii) aceleração do desenvolvimento do ensino pré-escolar; (iii) universalização do ensino obrigatório de nove anos; e (iv) melhoria da qualidade do ensino obrigatório, especialmente em zonas rurais, cujos esforços têm sido recompensados pelos resultados socioeconômicos.
No entanto, o leitor deve estar se perguntando o que há de tão especial nesse sistema de ensino. Embora possua uma estrutura muito do sistema educacional brasileiro — pré-escola, ensino primário, ensino secundário e ensino superior — os estudantes chineses devem completar nove anos de escolaridade obrigatória. Aqui na China, as crianças a partir dos três anos de idade já estão aptas a ingressarem na pré-escola, ou creche, se preferir, e permanecem até os seis anos. Detalhe, a educação pré-escolar não é obrigatória, e muitas pré-escolas são privadas.
A seguir, temos o ensino primário (ensino fundamental). Este começa aos seis anos de idade e no qual as crianças permanecem por um período de seis anos. Este é seguido do ensino secundário, o qual é dividido em dois, a saber, o ensino secundário júnior, no qual os alunos permanecem por mais três anos, seguido do ensino secundário sênior (ensino médio), por iguais três anos. Existem cinco tipos de escolas secundárias na China: (i) o geral; (ii) o técnico ou especializado; (iii) para adultos; (iv) profissional; e (v) a escola de artesanato. Estes quatro últimos são considerados como escolas de ensino secundário profissional. Os estudantes, ao concluírem o ensino primário, são submetidos a um exame público chamado de Zhongkao, o qual o governo utiliza para designar os alunos a diferentes escolas secundárias, e a admissão na escola secundária depende da pontuação obtida nesse exame. Nos últimos anos, governo chinês tem promovido esforços significativos para expandir a participação em escolas secundárias, sobretudo as profissionais, a fim de satisfazer as necessidades econômicas e de mão de obra do país, em rápida evolução, tendo em vista que, em 2014, as escolas secundárias profissionais representavam pouco menos de 22% do total de matrículas em escolas secundárias s sêniores na China (UNESCO-UIS, 2016). Por sua vez, ainda que o ensino secundário sênior não faça parte da escolaridade obrigatória na China, em 2018, 95% dos diplomados do ensino secundário júnior continuaram os seus estudos em escolas secundárias sêniores. Este número é notável porque, em 2005, apenas cerca de 40% dos jovens diplomados do ensino secundário júnior continuavam seus estudos.
Quando concluem o ensino secundário, os estudantes chineses são submetidos a um outro exame, que é muito parecido com o nosso vestibular, e o qual é chamado de Gao Kao. Essa prova, realizada em nível nacional, permite que os estudantes escolham, segundo a nota obtida no exame, a instituição de ensino na qual desejam ingressar. Vale ressaltar também que, devido à pressão extremamente elevada causada pela disputa dos estudantes que prestam anualmente esse o concurso — em 2019 foram 10,3 milhões para 9,1 milhões de vagas —, o segmento de “cursinhos pré-vestibulares”, tal como ocorre no Brasil, é outro componente do segmento educacional que tem crescido enormemente.
O ensino superior, na China, teve uma enorme expansão a partir do final da década de 1990. As taxas de matrículas no ensino superior aumentaram de 21%, em 2006, para 39%, em 2014, e mais de 45%, em 2018, no país. Hoje, a China possui mais de 2.700 instituições de ensino superior. Muito semelhante ao sistema brasileiro, no sistema chinês, os cursos de graduação exigem quatro anos de estudo, e na pós-graduação stricto sensu, o mestrado exige três anos, enquanto o doutorado exige de quatro a cinco anos.
As reformas educacionais compreenderam também a melhoria do currículo escolar, não se limitando às tradicionais disciplinas de idiomas como o mandarim e o inglês, ou disciplinas de ciências exatas como a matemática, física, química, biologia, ou mesmo atividades práticas abrangentes como a educação física e artes. O currículo estudantil é complementado por atividades extras como tecnologia da informação, pesquisa em ciência, serviços comunitários sociais, sociologia, música e, em alguns casos, robótica e tecnologias disruptivas como biotecnologias, tecnologias espaciais são disciplinas cursadas pelos estudantes dos ensinos primário e secundário, e as quais têm como objetivo melhorar a criatividade e o desenvolvimento de responsabilidade social através de experiências práticas dos jovens.
Mas a “revolução estudantil” chinesa não se limita às suas fronteiras. O país tem investido pesadamente em intercâmbio. Como exemplo, a China tornou-se o maior exportador mundial de estudantes estrangeiros. Em 2016, o número total de estudantes chineses que estudavam no exterior era de 545.000, e, em 2018, esse número cresceu para 663.000. Além disso, 80% em média dos estudantes intercambistas optam por retornar à China, bem como o país recebe aproximadamente 100 mil estudantes estrangeiros por ano, oriundos de um total de 205 países, tornando-se a o maior destino na Ásia para estudar. Também, as instituições de ensino chinesas estão entre as melhores da Ásia, tal como a Universidade de Tsinghua e a Universidade de Pequim ocupam a 23ª e 24ª posição, respectivamente, do Times Higher Education World University Rankings de 2020.
Em suma, essas melhorias sistêmicas na educação foram diretamente responsáveis por mudar o perfil da economia chinesa, na qual a inovação tem um papel central (em uma coluna futura abordarei a inovação na China). Os investimentos feitos pelo governo chinês (desde de 2012 a China investe 4% do PIB em educação) têm rendido frutos na medida em que as melhores oportunidades na educação dos cidadãos refletiram-se no nível de capital humano no país.
Por fim, quando a República Popular da China foi fundada em 1949, isto é, 72 anos atrás, possuía mais de 80% da população analfabeta. Em menos de um século o governo chinês reverteu essa realidade ao entender que não existe desenvolvimento de uma economia, de uma sociedade madura, de ciência, de tecnologia e inovação sem um alto nível de educação. A educação tornou-se um direito de todo cidadão chinês e a sua obrigatoriedade universal deve ser a base e o símbolo da moderna civilização chinesa. A educação é o fator central para o desenvolvimento em longo prazo de um país.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.